A juventude e o ódio
O ódio como discurso político na recente eleição presidencial no Brasil
Na recente campanha presidencial do Brasil, vimos ressurgir o discurso de ódio que havia nascido quando da deposição da ex-presidente Dilma. O ódio foi explorado no discurso, sempre através das redes sociais, pelo candidato da extrema direita - ódio contra seus opositores, contra os homossexuais, contra os negros, sobretudo. Associado ou incorporado pelo discurso religioso dos neo-pentecostais, a campanha se transformou em uma "exorcização do demônio" ao qual as categorias visadas pelo candidato foram identificadas.
Com o objetivo de discutir o ódio como discurso político, a radicalização, e a característica da estrutura de linguagem da política atual, o Centro de Estudos Freudianos do Recife realizou, antes do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, uma discussão sobre essas questões, tomando por base o texto A juventude e o ódio de Hélène L'Heuillet publicado na página da ALI e traduzido para esta ocasião.
Amélia Lyra
A juventude e o ódio[1]
Hélène L'Heuillet
Agradeço vivamente a Angela, pelo convite para participar das reflexões desse cartel sobre a psicologia das massas contemporâneas, e agradeço igualmente a Yorgos e Gilles por terem aceitado discutir o assunto que escolhi tratar: A juventude e o ódio. O ódio da juventude, no sentido do genitivo subjetivo, o ódio que a juventude experimenta pelo mundo, interessa com efeito a questão das novas massas, com ou sem líderes.
A juventude sujeita ao ódio não é a juventude toda, mas ela representa uma parte significativa o suficiente para inquietar o social. Ela é com efeito, a juventude "radical", em um significante que não é oportuno, a meu ver, de começar por recusar, ou pelo menos, que não podemos recusar antes de compreender qual real ele pôde apreender para ter tanto sucesso. Falar de "radicalização" para designar o engajamento no jihadismo, nos obriga a nos situarmos no ponto de radicalidade da recusa do qual testemunha a juventude seduzida por esse fenômeno. O ódio experimentado pela juventude é com efeito um "não" radical, um "não" que toma a civilização, a cultura, a política, em suas raízes; quer dizer, a humanização do humano e a vida comum dos seres falantes, dos falaser.
O "não" da juventude radicalizada é um "não" que quer erradicar tudo o que não funciona na ordem social e política. A radicalização não toca, é claro, somente a juventude, mas o recrutamento pelo jihadismo, quer se trate da Al-Qaïda ou do Daech, tem por alvo privilegiado a juventude (a idade média do recrutamento situa-se entre 17 e 28 anos). Esta radicalização para ser efetiva, supõe a relação a uma massa, umma virtual que se trata de re-encontrar na passagem ao ato real. Existe líder nessas massas? Isso não é certo, nem Ben Laden nem Baghdadi jamais se conduziram como líderes populistas e não unicamente em razão da clandestinidade à qual o uso do terror obriga. Parece que estamos precisamente nesses casos pontilhados por Freud em Psicologia das Massas (cap. 6 Outras direções de trabalho), onde ele evoca a possibilidade de que o líder da massa seja substituído por uma abstração, por uma ideia "com a qual as massas religiosas já fazem muito bem a transição,com seu chefe supremo impossível de mostrar". E ele acrescenta (perdão por uma citação longa): " O líder ou a ideia condutora poderiam também, por assim dizer, tornar-se negativos; o ódio sobre uma pessoa ou uma instituição determinada poderia ter um efeito também unificante e suscitar laços de sentimentos análogos àquele que suscita a lealdade positiva. A questão é então saber se o líder é efetivamente indispensável à essência da massa."
As massas unidas pelo ódio são aquelas que reúnem os jovens seduzidos pela radicalização. Então, longe de recusar o significante "radicalização" me parece que para compreender o ódio experimentado pela juventude, é necessário mesmo alargar a extensão desse termo, não reservá-lo à radicalização jihadista, mas incluir a tentação populista que toca também a juventude. Na França, o voto na Frente Nacional, não é um voto do idoso, mas na mesma faixa de idade do jihadismo, ele está no topo das intenções de voto dos não-abstencionistas, concorrendo com a Françe Insoumise. Há também massas que tornam efetivas a passagem ao ato que representa no "sistema", um voto "anti-sistema", e existem massas mesmo com líderes, se reunindo em torno de um líder.
Vou tentar colocar três questões para tentar compreender esses fenômenos. Ao intitular esta conferência "A juventude e o ódio", desejei não reduzir a exposição ao ódio experimentado pela juventude, para começar por situar o contexto. O ódio é uma questão para a juventude e é o sintoma de uma parte dela. A primeira questão se coloca então sobre a filiação: De quem ou de que os jovens são filhos? Segunda questão: como os jovens hoje colocam o ódio em ato? E terceiro: como eles podem se virar com seu ódio para não o colocar em ato?
1 - De quem ou de que os jovens são filhos?
Começar por indagar sobre o ódio da juventude como sintoma, é já fazer uma escolha teórica, aquela da recusa da banalização do ódio. Existe uma forma romântica de ver o ódio que surge na juventude seduzida pela radicalidade, como se este fosse um equivalente do amor. O ardor guerreiro e a paixão destrutiva se compreendem então como equivalentes do ardor erótico. É isto que é considerado como característica da juventude, e isto desde as descrições dos filósofos da antiguidade. Tradicionalmente, sempre, o ódio vem com a idade: os mais velhos são amargos enquanto os jovens são amorosos. A racionalização ou a banalização consistem em se apaziguar dizendo que isso é sempre verdade, mas de outra maneira. No mínimo, dizemos às vezes, nessa lógica banalizante e racionalizante, eles amam a morte. Mas é uma grande vitória de Ben Laden ter feito crer que o amor à morte era amor, enquanto que de fato trata-se de ódio.
Perguntarmos de que esses jovens que expressam seu ódio nas passagens ao ato mortíferas são filhos, também não é buscar as causas da radicalização. A causalidade sociológica pode apenas, no máximo, encontrar "fatores" ou "vetores" da radicalização. Mas, esses "fatores" ou "vetores" não permitem compreender o ódio, pois eles estão aquém da escolha que, no cruzamento dos caminhos, conduz, a privilegiar a via de Eros, ou a via de Tanatos. Essas análises situam-se unicamente, no nível do consciente, no nível da ideologia. Ora, se é necessário evidentemente, escutar o que dizem e o que não dizem os jovens seduzidos pelo ódio, é unicamente escutando-os além do discurso ideológico que eles recitam como um disco que podemos então aprender alguma coisa do que os conduz a precipitarem-se no ponto final da vida sem passar pela vida, quando isso toma a forma da radicalidade jihadista. Na radicalidade populista, a passagem à morte parece menos precipitada pois é ainda metafórica, já que, isto que é visado é a condenação à morte da forma representativa, parlamentar da democracia, acusada de não ser senão blá-blá-blá. A passagem pelo líder parece frear o acesso à morte, o que não é pouco, mas não permite ocultar que, na história, a morte política sob o efeito dos populismos se traduz por regimes criminosos.
A diferença do populismo e do jihadismo nos ensina o que está em jogo no ódio, para a juventude que é submetida a ele. O que está em jogo é uma gigantesca transformação da ética que é produzida no discurso contemporâneo e do qual somos herdeiros, e no qual educamos nossos filhos sem saber. O que está em jogo se sustenta na linguagem. Houve um suspensão do recalque no que diz respeito ao ódio, e a juventude nasceu nessas condições que são condições novas para o recalcamento do conjunto das pulsões e particularmente do ódio, pois quando as pulsões não são recalcadas, ou pelo menos quando as condições do recalque mudam, isso tem por efeito que o ódio pode muito mais facilmente ser colocado em ato. Quando as pulsões não são recalcadas ou são recalcadas de maneira diferente, é o ódio que ganha.
O recalcamento do ódio foi por muito tempo apresentado como um mascaramento do ódio em amor, por exemplo na máxima "tu amarás teu próximo como a ti mesmo". Trata-se bem do ódio, como mostra Freud em Mal-estar na cultura. Os homens sempre a ouviram como uma autorização a odiar aqueles que não são os "próximos". Este recalcamento do ódio pelo amor parece ser hoje objeto de uma nostalgia, basta vermos as declarações de intenção "contra o ódio" e os apelos ao amor que os acompanham no discurso daqueles que refletem sobre a sociedade. Mas um recalcamento não se decreta. E o recalcamento do ódio não impede o ódio, somente coloca um freio ao seu gozo, gozo que favorece a passagem ao ato odiento.
Tudo se passa como se a realidade psíquica do ódio, notadamente trazida à tona por Freud e a psicanálise, fosse reconhecida em sua verdade. Isso não incomoda ninguém, "ter ódio". A suspensão do recalque do ódio no discurso social não se situa entretanto no mesmo registro que a suspensão do recalque no tratamento analítico. O que diferencia os dois não é a oposição entre coletivo e singular, mas o fato de que num caso isso tem a ver com dar conta de um inconsciente no consciente, no reconhecimento de uma pulsão transformada por sua passagem pela linguagem, sua lenta elaboração mesmo quando ela é revivida com força no psiquismo, enquanto que no caso de um discurso de ódio não recalcado, o ódio é de imediato consciente, sob forma de insulto, de calúnia, de sarcasmo, mesmo de grito, e pode autorizar uma passagem ao ato. Em um caso existe o reconhecimento do ódio que impede a passagem ao ato, e no outro, gozo que o encoraja.
Minha hipótese é que fundamentalmente, esse discurso do ódio que autoriza a passagem ao ato é menos um discurso que o efeito de uma degradação da linguagem. O ódio desarticula a linguagem, as palavras ditadas pelo ódio não fazem mais discurso, elas não supõem, de fato, um interlocutor, elas não se dirigem a ninguém. O ataque populista é um marcador de reconhecimento, a propaganda jihadista não se dirige apenas àqueles que são susceptíveis de aderir a ela. É, bizarramente, isso que convence. Pelo ódio, existe mais adesão que convicção. A diferença de lugar que faz com que o discurso seja uma espécie de "corrida" não é reconhecido. É a razão pela qual na estrutura, o ódio produz, não sociedade, mas massa - com ou sem líder. A sociedade é por definição dividida e plural, animada pelo conflito da discórdia dos discursos. Entretanto, quando os discursos não giram mais, a sociedade se transforma em massa. Toda destruição da linguagem tem por efeito que a sociedade se transforme em massa. Bizarramente, o desenlaçamento odiento produz totalidades compactas - instáveis e podendo implodir, mas compactas - enquanto que os laços que têm relação com Eros, quer dizer, que são resultado de uma tessitura pulsional, de libido e também, com certeza, de uma forma de ódio, deixam existir divisão e pluralidade. Isto é paradoxal apenas aparentemente, divisão e desenlaçamento não são da mesma ordem. A primeira é o efeito sobre o sujeito da linguagem, a segunda, efeito da tentativa de escapar ao domínio daquela e à suas incidências subjetivas. O desenlaçamento provoca a fusão; a divisão é a condição dos laços.
Crise de linguagem e o não-recalcamento do ódio constituem então o "contexto" da juventude contemporânea. A crise da linguagem produz uma desubjetivação geral. Ela concerne tanto ao uso generalizado de acrônimos, quanto ao desaparecimento da pontuação nas nossas práticas de "comunicação", assim como toda a subversão do sentido das palavras no vocabulário político, que não é mais da ordem da equivocidade, mas da mentira (por exemplo, a palavra "república" para designar interesses privados). O termo contexto, convém na verdade muito mal pois não há precisamente texto, nem tão pouco, tessitura pulsional - o que é requerido para que exista essa espécie de tecido que é um texto. Mas podemos empregá-lo pois todas as tentativas de se abster da linguagem têm lugar na linguagem. A linguagem produz ela mesma uma forma de ódio que se sustenta na revelação do "nada" que lhe é inerente. Daí a tentativa de se abster da linguagem na passagem ao ato jihadista, que recusa os princípios da política enquanto relação especificamente linguageira, ou aquela de se situar em seu limite, como no ataque populista.
Este "contexto", esse singular contexto, pode ser nomeado niilismo, se concordamos em considerar o niilismo como uma tensão em direção ao nada, "nihil" que impede a negação de desempenhar seu papel de operador da simbolização. Existe verdade no niilismo. O nada é com efeito inerente ao fato de falar, ele é a condição dos falaseres. Com o nada vem também necessariamente a dimensão do além. Com efeito, nada detém o reenvio de um significante a outro significante. Consequentemente, o “não” da negação relança o apelo do significante para um outro significante. A negação, por estrutura, simboliza, pois ela funciona como apelo de um significante para um significante. Para que a negação funcione como operador da simbolização, é necessário que o "nada" não seja um fim, mas uma simples condição. Existe niilismo, quando desse nada que constitui a função do falaser, tira-se a conclusão que nada tem valor, e que nada merece existir. Por consequência, o além retorna no real, sob forma de imperativo de destruição. O além serve então como uma forma de desenlaçamento do ponto de amarração. E aí, um líder não é necessário. O comando de matar no jihadismo, pode vir sob forma de mandamento. A negação não é mais um operador da simbolização, mas da destruição.
Os filhos da crise da linguagem e do não-recalcamento do ódio não podem mais manejar a negação a não ser tornando-a absoluta (é necessário destruir tudo, rejeitar tudo, denegrir tudo). O ódio não pode mais ser trançado juntamente com as outras pulsões, e as pulsões mesmas não podem mais ser simbolizadas. Ao esgarçamento social corresponde o esgarçamento pulsional. Então, duas questões: como esses que estão presos nesse jogo colocam em ato o ódio e como o trançado se mantém para os que não o colocam em ato?
2 - A colocação em ato do ódio na juventude radicalizada
A colocação em ato do ódio na juventude radicalizada, se ela é o efeito do não-recalcamento do ódio em um contexto de crise da linguagem, ela toma a dupla forma do ódio de si e do ódio do outro, ódio de si como outro, ódio do outro na medida em que o outro tem uma parte de si. Vai-se aqui do Outro ao outro. Por que o Outro não é reconhecido no social, o outro é odiado em si mesmo junto com ele. A colocação em ato do ódio passa, no duplo caso do jihadismo e do populismo, por este duplo ódio no qual o ódio de si serve de alavanca ao ódio do outro. O registro especular testemunha de toda sua violência quando os operadores da violência não funcionam mais.
O jihadismo e o populismo têm em comum descarregar o sujeito do ódio de si projetando-o sobre o outro, e de projetar sobre si o ódio do outro. É isto que significa o ideal de pureza nos dois casos. No jihadismo, enquanto não se matou infiéis, ainda se é um. É necessário odiar todo infiel, como se odeia o infiel que está em si, e o único meio de suprimi-lo é se matar matando-os. No populismo nacionalista, da mesma forma, não se é nunca"nacional"o bastante. A xenofobia é um esforço de extrair a alteridade de si, e o ódio do outro é ódio do que está sempre misturado nas culturas humanas. O voto populista é já uma passagem ao ato. Odeia-se o outro como se odeia a si mesmo como outro. A idealização de uma comunidade pura passa pela desidealização odiada.
A colocação em ato do ódio, nessas passagens ao ato que são o engajamento no jihadismo e o engajamento no populismo, não são possíveis senão por uma intensa atividade de desidealização. Fazer complô por exemplo, presente nos dois casos, é um exemplo de desidealização. Uma desidealização bem acabada é um obstáculo completo a toda crença. Fazer ver o contrário das coisas, a verdade sob a mentira, é rasgar todas as telas, aí compreendido o semblante que é a linguagem mesmo. O que resta da retórica nos discursos de recrutamento são verdadeiros exercícios de desidealização. A retórica do complô permite que o ódio seja colocado na narração e não seja mais vivido de um modo afetivo. Os argumentos racistas procedem da mesma maneira. O ódio é sempre generalizante. Ele libera o sujeito dele mesmo e então aquele que odeia não pode considerar um sujeito em si mesmo.
Os exercícios de desidealização permitem assim suspender o interdito de matar, fundador das sociedades humanas. No populismo eles suspendem a obrigação de troca social, ativando a nostalgia da sociedade fechada. O ódio da representação política é ódio da divisão sob todas as formas, divisão subjetiva, divisão do povo com ele mesmo. No jihadismo, as formas de matar parecem indicar que remontamos mesmo aquém do especular.
Como esses interditos e essas obrigações maiores são suspensas? Não é tão fácil para um falaser não observar o interdito de matar e a obrigação de troca. Por sua vez, todo mundo pode fazê-lo em algumas circunstâncias e isso nunca é fácil, pois isso implica uma renúncia à linguagem, uma transgressão não somente das leis da cidade, mas das próprias leis da linguagem. Na história política humana, se a analisarmos como uma história das pulsões, nos apercebemos que a suspensão do interdito de assassinato na política teve geralmente por condição a formação expressa de uma ordem, dada pela autoridade política. Os sujeitos chamados a obedecer podiam aderir apenas parcialmente a esse comando vindo de um outro. A massa criada era um exército, o que Freud chamou uma "massa artificial", e que ele define como uma das massas para as quais "uma certa pressão externa é colocada em ação para lhes preservar da dissolução". (Psicologia das massas, cap. 5)
No jihadismo, o modelo militar é certamente empregado. Mas, há uma grande diferença com o exército. A pressão não é externa e a obrigação de obedecer deve vir do próprio sujeito. É o sujeito que decide remeter-se a uma autoridade que lhe ordena matar. Além disso, a comunidade que reúne o jihadista é mais virtual que real, mesmo no tempo do Daech. Isso não a torna menos fusional e compacta. Sua força vem de que ela é fundamentalmente uma comunidade de um tempo posterior, após o fim dos tempos. A ordem então, vem diretamente do grande Outro: "AllahAkbar". E a comunidade está unida por laços horizontais, que são mesmo, eletivamente para o Daech, aqueles da fratria. É por razões de estrutura que o Daech encorajou as fratrias. Na espera do fim dos tempos que o jihadismo tem de fazer precipitar, os laços são horizontais. A palavra não pode vir senão de dizeres do profeta após seleção daqueles a quem concerne o fim dos tempos. É um "outro islã" que esse que serve para unir o jihadismo, outro que os islãs compatíveis com a ordem secular - razão pela qual esta massa não é mais aquela da Igreja, outra massa artificial, segundo Freud. Este "outro islã", em ruptura com todas as outras correntes do islã, mesmo as mais rigorosas, passa pelo terror e requer um "não" radical à ordem secular. Matar-se matando, não é mais da ordem do sacrifício. Todo amor à vida deve ser considerado como idólatra. O modelo de autoridade dessas massas sem líder é um modelo mais maternal que paternal e é a razão pela qual a abolição de um sujeito no fim dos tempos toma a forma da promessa de ir ao encontro de um aquém do especular do qual testemunha a demolição dos corpos, nas formas de matar.
Parece que nas massas com líder, como são as massas populistas, alguma coisa de Eros subsiste ainda. O que une a massa populista não é unicamente um discurso de ódio, mas o amor ao líder. No nível da ideologia, como aliás no jihadismo, temos a impressão que existe um desejo de laços - de laços fortes contra os laços frouxos, das sociedades individualistas. Entretanto, a projeção do ideal do eu sobre o líder, que é o caminho das massas populistas, como o mostrou Freud, não cria laços. Este amor aí é da ordem da paixão e ele se dirige para a morte, como todo amor passional. Ele impulsiona a lógica especular narcísica a seu termo. A massa em fusão não está unida no sentido próprio, pois não pode haver aí laços senão entre sujeitos que não "colam" uns aos outros. É manifesto, de todo modo, que o desenlaçamento do ódio ataca o próprio líder. As famílias populistas estão, como as famílias jihadistas em desenlace permanente e o líder é abandonado também com a mesma rapidez que foi elevado ao nível de ideal. É necessário saber que quando se serve de suporte ao ideal para desidealizar, proferindo palavras de ódio, pode-se ser o objeto de ódio em retorno.
A diferença entre o populismo e o jihadismo não reside no motor pulsional do ódio, pois eles têm em comum a crença que a expulsão ou o assassinato do outro vão conduzir ao advento de um si-mesmo livre das escórias da alteridade. A diferença se situa na dimensão do discurso.
O populismo dissolve o discurso e dessa forma, ele é perigoso e assegura a passagem aos regimes de terror, quando não lhe é barrado o acesso. Mas ele permanece no domínio da política secular e podemos esperar que a linguagem política, da controvérsia aos programas, das contestações às invenções, prevaleça sobre a destruição das trocas de palavras.
No jihadismo passou-se para outro nível de destruição. E para esse outro nível, o recurso ao religioso é requerido. O religioso, no jihadismo, transforma o além em fim político. O fim político não é um programa político - o qual passa pela articulação de fins e meios e deve então submeter-se à lei dialética da linguagem. A destruição da linguagem toma no jihadismo a mesma forma de recusa da divisão subjetiva, da pluralidade e da mistura e também da equivocidade da linguagem como no populismo. Mas, nesse caso, o além faz retorno no real. Não há pequeno outro para receber a forma idealizada do eu, então se vai diretamente ao Outro, que ordena que se vá diretamente ao além. Certamente, alguns jovens entram no jogo da linguagem e a ideologia então os impede de passar ao ato. Outros se engajam numa lógica de guerra e não de terror; eles se tornam os "arrependidos". É sem dúvida para evitar esses dois riscos, que não são completamente evitáveis, que o recrutamento pelo Daech se tornou nos últimos tempos tão rápido.
A religião inegavelmente, desempenhou um papel na aceleração do recrutamento jihadista. A religião não serve mais à sublimação como em Freud. Ao contrário, ela serve para a mobilização pulsional. A conversão do sujeito não se faz numa transformação do fim pulsional mas ao contrário, pelo encorajamento deste. O sujeito, na religião, se consagra aos fins últimos, como diz Lacan. Não é unicamente no nível intelectual,mas também no nível pulsional que esta devoção, ou que este devotamento, podem ter lugar. O que é buscado nos engajamentos radicais da juventude que tem em comum a erradicação da alteridade é a princípio mais uma forma de báscula em uma nova economia pulsional do que uma sublimação. Trata-se de se descarregar de si, do peso da subjetividade dividida e questionadora. Os jovens radicais não veem nos ver, ou nos deixam, pois eles encontraram a solução e, dizem eles, o apaziguamento. A conversão religiosa clássica e os engajamentos políticos não transformam a economia psíquica, mas abrem novas trilhas, para retomar o vocabulário do Projeto de Freud. O que é visado, através das colocações em ato do ódio, é mais o acesso a um além, talvez menos sofrimento psíquico que na hiância psíquica, esta hiância que se revela para nós muito simplesmente quando falamos. É esta hiância que preenche uma mobilização pulsional a serviço deste além real que é a morte.
Nesse dispositivo, o valor da vida só pode então ser radicalmente colocado em questão, e não é espantoso, que fora desses engajamentos radicais, o suicídio dos jovens represente um fenômeno de amplitude que deve nos interrogar, pois já é uma colocação em ato do ódio. E ele supõe uma massa, uma massa sem líder. A vida, para a juventude que não foi educada com a capacidade de simbolizar a negação e com a negação que não pesa mais na balança quando a aspiração a este para-além da morte se apresenta com sua força enigmática. A vida está sempre aquém desse objetivo. Para grande número dentre eles que se lançam nos esportes extremos ou nas experiências-limites, ela vale no máximo como reservatório pulsional ao qual se vai recorrer tanto quanto possível. É verdade que o além labora sempre a pulsão, mas aí não é em vista de sua metamorfose, como na sublimação que ele vai laborá-la, mas, a princípio sob uma forma de aspiração, que o sujeito traduz pela existência, nele mesmo, de um "apelo" ao qual ele teria respondido tanto no populismo como no jihadismo.
Esta hiância que preenche a aspiração mortífera toma frequentemente o nome aparentemente banal de tédio. Mas, o tédio já é um ódio, é a etimologia da palavra tédio (estar com ódio). O tédio faz odiar a si mesmo. Diz-se então que no tédio, não sabemos o que fazer consigo mesmo. O pulsional erra no vazio quando se está entediado. O vazio do tédio não é o vazio que aparece como falta no desejo. O tédio pode ser insuportável. A satisfação pulsional procurada por aqueles que se entediam é o gozo do próprio ódio, que se traduz pelo choque, palavras chocantes do líder populista, choque das imagens no recrutamento jihadista. É o choque que liberta do que resta de subjetivo no tédio. O tédio e a traumatofilia caminham juntos.
Como a juventude pode escapar ao tédio, ao ódio?
3 - Escapar ao ódio
Na verdade, não escapamos do ódio, não escapamos do tédio. São experiências necessárias. Às vezes, não as experimentar, é muito inquietante. Mas, no caso da juventude contemporânea, a dificuldade é de encontrar na cultura os recursos que permitam simbolizar as pulsões e realizar uma tessitura, um texto, que permita não ir diretamente para a morte. Contrariamente ao que os jihadistas fazem crer, transmitir o valor da vida é o que há de mais difícil numa cultura. Que o ódio e o tédio sejam sintomas de nossa juventude, testemunham bastante que o amor à vida é tudo, menos algo dado de graça. As pulsões não são "naturais", elas não conhecem, lembra Lacan, nenhum dos ritmos biológicos (alternância dia/noite, rotação das estações). Elas estão tomadas no Outro, na linguagem. A educação, quando ela não se contenta, como hoje, no desenvolvimento de performances cognitivas, tem a princípio a função de permitir que se tome a pulsão em um tecido, no texto da realidade subjetiva de cada um.
Quais são os recursos mobilizados pelos jovens que não operam a báscula psíquica no ódio? De início, podemos observar que o ódio está de toda forma menos recalcado nos textos nos quais a juventude se reconhece. Mesmo quando existe texto, quer dizer, tessitura pulsional, tessitura do amor e do ódio, o ódio se diz hoje cruamente. As palavras das canções, notadamente no rap, estimadas por quase todos os jovens, o mostram bem. São palavras, é linguagem que, salvo exceção, não incita à passagem ao ato odiento, e fala até de amor, de aflição, de alegria. Sem ocultar o ódio.
O ódio é, de toda forma na cultura, como Freud o observou em Mal-Estar na Cultura, mais difícil de recalcar que o amor. Os códigos amorosos mudam na juventude de hoje. Os laços libidinais se transformam. O ódio não é mais recalcado pelo amor, e o amor deve encontrar outro caminho em um contexto senão de ódio assumido, pelo menos de ambivalência assumida. A única coisa que se pode esperar é um novo laço pulsional a partir dessa ambivalência assumida, que não retornará às condições do recalque de antigamente, mas que limitará o gozo do ódio e a cultura do choque.
Esta nova tessitura, vemos mal como poderia não se desenvolver nos laços horizontais. O argumento do cartel evoca NuitDebout[2] , Santo Daime e Movimento Passe-livre. Este último me parece se aparentar mais ao NuitDebout que ao Santo Daime. O que nos permite distinguir NuitDebout das massas populistas, não é a ausência ou presença de líder, pois não há líder no jihadismo e este é entretanto, muito diferente do NuitDebout. Movimentos como NuitDebout ou Movimento Passe-livre estão tomados na linguagem, com reivindicações ou discussões das quais se pode contestar a pertinência, mas que parecem mais com manifestações do que com massas, ou no vocabulário de Freud, com multidão (Menge) do que com massa (Massen). Nem toda ocupação de rua ou de praça faz massa no sentido fusional do termo. O "sim" de adesão ao líder não deve ser confundido com o "não" a uma reforma ou a uma medida governamental. De fato, é o "sim" de adesão ao líder que é um "não" radical, enquanto que o "não" das manifestações populares nas quais se discute projetos de sociedade é um "não" dialético, que corresponde à função própria da juventude.
Pois a juventude tende a dizer "não" se virando ao mesmo tempo com o que foi deixado. A questão não é que a juventude diga não. Toda geração deve transformar a herança, exceto deixá-la perecer. Existe um niilismo escondido na juventude conservadora de hoje, que valoriza o passado e experimenta ódio por toda mudança qualquer que seja ela. Eis porque a paixão revolucionária é erotizada na juventude. A juventude niilista parece assimilar temas revolucionários, mas é muito diferente sobre o plano pulsional de se engajar em uma revolução (pensemos no entusiasmo pela primavera árabe), e no jihad.
A questão é a tessitura desse "não" com um "sim". A invenção das novas formas de democracia me parece tentar uma nova tessitura e não reunir massas odientas. Embora os movimentos que emanam dessa busca sejam as vezes atravessados pelo ódio, o ódio não é seu motor passional. Não existe líder aí, mas o que faz retorno não é o além da morte, mas antes uma tentativa de reencontrar o sentido da palavra e da controvérsia política. Se achou graça dos projetos de constituição política que foram chamados a se formular com o NuitDebout, mas, o que é isso, senão a tradição popular da discussão política sem a qual não podemos estar interessados pela própria representação parlamentar? O laço que unia os participantes não era especular. São menos associações que justaposições, que sacam os recursos inexplorados de vizinhança para a simbolização do laço. Isto não exclui de forma nenhuma a existência de lugares de exceção (existe notadamente algumas falas intelectuais que emergem) mas, na contiguidade, alguma coisa do laço com o outro parece poder realizar uma nova tessitura do "não" com a ordem estabelecida e do "sim" da proposição, do ódio que permanece não-recalcado e do Eros que o modera.
Conclusão:
As relações da juventude com o ódio nos levam a interrogar o apoio que podemos ou não dar a algumas iniciativas dos jovens, e não unicamente como podemos ajudar a reprimir as tentativas radicais.
A desradicalização entra em conflito com o impasse lógico de destruir a destruição. Ao tomar a questão da radicalização de modo unicamente cognitivo, não se alcança o que está em jogo na pulsão. Entramos mesmo em congruência com a grande aporia contemporânea, que reside no superinvestimento do cognitivo. Contrariamente ao que as vezes se diz, e ao que dizem os jovens radicalizados, o hedonismo - o pseudohedonismo das sociedades de abundância – é suplantado pelo investimento cognitivo do transhumanismo. A juventude radicalizada exprime bem este ódio da vida que constitui a trama do transhumanismo, no qual não existe nada mais do que performances, não há inconsciente, nem gozo de um corpo reduzido aqui à sua imagem. O homem transhumanista não arrisca mais ser dividido por seu desejo inconsciente. Somos já todos transhumanistas, pois somos governados por algoritmos que nos fundem em massas perfeitamente acéfalas: “vocês gostaram de tal livro, então vocês fazem parte da massa de leitores de tal ou tal outro”, “vocês assinaram tal petição, então vocês fazem parte também daqueles que assinaram também aquela lá”.
A única forma de apoiar a juventude é de lhes permitir sustentar sua divisão subjetiva, o que não é fácil, pois isso passa por um tessitura pulsional nova, como essas canções que dizem o amor junto com o ódio e das massas sem líder, das quais se pode entretanto esperar que elas contribuam para "secar o Zuydersee" - para retomarmos a imagem pela qual Freud simbolizou o trabalho de tessitura pulsional da civilização.
[1]Esta conferência foi proferida em 6 de dezembro de 2017 na Maison de l’Amérique latine no âmbito do Ciclo de conferências organizado pelo Cartel franco-brasileiro de psicanálise sobre o tema: Massas com líder e massas sem líder: aspectos da subjetividade contemporânea. Ela tem por base as teses desenvolvidas por Hélène L'Heuillet em sua última obra Tu haïras ton prochain comme à toi-même, lançado pela editora Albin Michel em setembro de 2017 e que mereceu nossa atenção. Com efeito, trata-se de um trabalho que sai do campo da análise fenomenológica dos radicalismos contemporâneos para nos propor uma análise estrutural a partir da estrutura mesma da linguagem, operando uma tessitura bastante interessante entre psicologia coletiva e psicologia individual, entre o que é da ordem do político e o que é da ordem da subjetividade. Apesar do título um pouco rude, não nos enganemos: trata-se de um livro de um grande otimismo sobre o poder da linguagem em continuar a nos civilizar, a aceitar nossas divisões, nossa alteridade constitutiva, nossa humanidade.
[2] Nuit Debout é um movimento social francês que começou em 31 de março de 2016, decorrente de protestos contra as reformas trabalhistas propostas e conhecidas como a lei El Khomri ou Loi du travail. N.T.