Quando a terra vem na mala.
2023

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DOS REIS-BETANCOURT Eliana
Cartel franco-brésilien de psychanalyse

Somos 280 milhões de migrantes no mundo. 4% da população mundial. Se todos os migrantes formassem um país, seria o quarto país mais populoso do mundo. Destes 280 milhões, quase 80 milhões de pessoas foram deslocadas à força. Entre elas estão 26 milhões de refugiados.

 

Nesta conversa com vocês, quero focar nos 200 milhões que “escolheram” sair da terra natal. Apesar de que os efeitos psíquicos destas diferentes formas de migração possivelmente se aproximem. Será que existe um fascínio em mudar de país? Trocar de língua? Ser outro ou outra como disse o poeta?

 

Elizabeth Bishop, que como vocês sabem viveu no Brasil pois apaixonou-se por uma brasileira, numa de das suas poesias pergunta:

“É falta de imaginação que nos faz vir
a lugares imaginados, não simplesmente ficar em casa?
Continente, cidade, país, sociedade:
A escolha nunca é ampla e nunca livre.
Deveríamos ter ficado em casa, o que quer que isso seja?”[1]

 

Então, do que se trata “ficar em casa? Sair de casa?

 

Como muitas pessoas do sul do Brasil, a primeira vez que atravessei uma fronteira foi para ir ao Uruguai. Fim dos anos 60, plena ditadura militar no Brasil, fomos de carro.

 

Eu assustada perguntei “por que esses tanques de guerra?  Ao que meus pais responderam “estamos entrando em outro país.”

 

Ali começou minha pergunta: o que é outro país? Acho que já imaginei que uma fronteira era uma espécie de túnel da Alice no país das maravilhas que me levaria ao desconhecido e inapreensível. E não é que eu estava certa? Desde lá as fronteiras não desapareceram. Pelo contrário, cada vez mais as fronteiras se protegeram de tanques de guerra, mesmo que invisíveis.

 

Marielle Macé utiliza o conceito “forma –país” lembrando que:

“Em suas bordas externas, aonde o país vai embora rumo a outro lugar, mas também onde ele resiste a ir embora, a estrangeirizar-se, a alterar-se (…) diversidade bem real dos efeitos de fronteira, de efeitos de bordas…”[2]

 

Enfim, estamos aqui pensando nas bordas inevitáveis dos países, nas bordas inevitáveis dos sujeitos. Em que momento nós migrantes decidimos deixar tudo para trás, sair de casa e enfrentar o novo, desconhecido e talvez impossível? Em que momento arriscamos um des-bordar? Cruzar estas bordas que nos constituem desde sempre?

 

Migrar significa reescrever o que desde o nascimento foi se acumulando em nosso balaio da experiência do mundo. Quando partimos toda a trama dos vários fios que formam a frase “esta é minha cidade” se desfaz.

 

O lugar de origem se inscreve e reinscreve no sujeito como um enredo formado de sons, cheiros, paisagens, texturas, temperos e silêncios. Todos estes elementos, minuciosamente embalados por nossa língua materna. A trama se desfaz, não significa que desapareça. Os caminhos simbólicos da nossa terra grudaram na pele e, de maneiras diferenciadas para cada sujeito, serão nossa bússola para a construção deste próximo mapa. O descolamento da terra natal produz também as fantasias de encontro com um novo que se assemelham de forma intrigante com as fantasias produzidas pelo retorno (como lemos bem em Ulisses) ou desejo de retorno a essa mesma terra. Inevitável que o emigrante sonhe com seu retorno e chegada a sua terra natal. Portanto, a terra não é mais sua. Na verdade, a terra nunca foi sua, mas o deslocamento migratório produz esse estado onírico de uma pertença que o sujeito obtinha, mas perdeu.

 

E como bem nos lembra Barbara Cassin:

“Nostalgia é o que faz alguém querer ir para casa, mesmo que signifique lá encontrar um tempo que passa, morte – e pior, idade avançada- em vez de imortalidade. Tal é o peso do desejo de retornar”[3]

 

No texto Romances Familiares, Freud nos lembra de uma fantasia muitas vezes encontrada na clínica psicanalítica: eu não pertenço a essa família.

 

“Sua sensação de que sua afeição não está sendo retribuída encontra abrigo na ideia…de que é uma criança adotada, ou de que o pai ou a mãe não passam de um padrasto ou de uma madrasta.”[4]

 

Atravessamos, segundo Freud, os espaços psíquicos entre uma possível idealização dos pais da primeira infância passando por uma decepção. Chegamos, provavelmente, à criação da fantasia de não pertencer, de não fazer parte daquele grupo nuclear que tão pouco tem a oferecer. Poderíamos pensar que esta seria então a tentativa de engendrar novos significantes em sua cadeia de pertenças: País mais inteligentes, mais belos, mais ricos e bem-sucedidos. Enfim, o devaneio requer país mais bem nascidos e de “melhor linhagem”.

 

Desse modo, vou aqui me permitir acompanhar a proposta freudiana, e a fantasia de encontrar novos pais. Mais ainda, que existe nesta busca de outros pais,  uma última oportunidade de tentar burlar a castração caso se descubra uma nova e mais valorosa filiação. Esta seria, por conseguinte, uma nova filiação que jogaria o sujeito de volta aos tempos em que os pais de origem eram perfeitos e o paraíso ainda não se perdera. Será que quando decidimos ou ainda sonhamos em mudar de país ou mesmo de cidade existe esta busca por país (ou país) que cumpririam a função dos pais aristocratas de Freud? Nesta tentativa de encontro com pais outros e país outro, um nó a mais se constitui: assim que pisamos em novas terras somos visitantes numa casa que nunca nos convidou. E assim, o impossível do migrar segue se inscrevendo. Como pertencer ou mesmo não pertencer desde essa posição de migrante?

 

Como pergunta Charles Melman: “Qual é a natureza deste objeto faltante que poderia religar duas culturas, dois países e duas histórias? Trata-se de uma perda real…”[5] Trata-se deste inter-dito, intra-dito, deste entre-falas, entre-culturas, entre-bordas.

 

Descubro a psicanálise muito cedo, aos 19 anos, fui escrevendo e reescrevendo este mapa de forma persistente. No segundo ano da minha emigração mudei para Boston e lá morei por 7 anos. Ainda não clinicava (nos Estados Unidos) e sentia a extrema angústia de ter perdido tudo. Andava pelas ruas buscando algo que não sabia ainda o que seria. Na porta de uma linda casa vitoriana li a palavra “Psychoanalysis”. Literalmente, bati na porta. Era uma escola que ensinava uma psicanálise meio diferente da que eu conhecia, mas falávamos uma língua comum e o mapa da navegação era o mesmo: chamava-se inconsciente. “Pertenci” a este grupo por muitos anos. Esbravejava e sofria por não poder expressar melhor, nesta nova língua, o que eu entendia por psicanálise, que diferia bastante do que eles entendiam. Era uma pertença frágil, imaginária, mas que me permitia “pensar que pertencia”. Produzia-se uma nova falta, um novo túnel de Alice que criava perguntas e pensamentos. De volta à New York, de novo andava e procurava. Também um grupo psicanalítico me acolheu, desta vez, falávamos a mesma língua (estudavam Lacan). Neste grupo, sentia-me  mais em “casa” e mais à vontade. No entanto, eu estava permanentemente me traduzindo. Até que resolvi fazer uma análise em inglês e a língua resolveu em mim se hospedar.

 

De alguma forma, nestas décadas de emigração, foi a psicanálise que me deu coragem de não pertencer. Foi também a psicanálise que me permitiu o imaginário de pertencer. Foi a língua que nunca perdi, foi a terra que sempre existiu, foi a água onde sempre naveguei. Se aceitarmos a palavra de Freud, teremos pouca esperança de que alguém possa pertencer sem acabar sendo tomado por armadilhas da própria dinâmica inconsciente. Pertencer necessariamente implica em nostalgia. Enquanto emigrantes, alguns de nós, vamos lutar para pertencer.

 

Ocorre que, por termos deixado nosso primeiro país, imaginamos que a dor da pertença acontece pois “eu não sou daqui”. Esquecemos, ou não sabemos, que nunca somos ou pertencemos a lugar algum. Como brilhantemente define Barbara Cassin: “Uma fronteira é uma linha divisória, em particular uma partilha de soberania, que para funcionar deve ser reconhecida por ambos os lados.”[6]

 

É possível que o migrante, inicialmente, atravesse a fronteira e imagine que a soberania do outro lado o adotou. Que a família aristocrática decidiu integrá-lo. Veja bem, ninguém emigra para países falicamente menos considerados por si e pelos outros. Importante notar que a soberania do outro lado ainda não  acolheu ao novo migrante e talvez nunca o faça. Se seguirmos este raciocínio, teremos que considerar que sua estadia no interregno[7] pode persistir. E sim, aqui temos alguns aspectos onde uma escuta analítica poderá avançar… falaremos mais adiante disto.

 

Há 2 anos minha avó espanhola faleceu, aos 104 anos. Ela atravessou o oceano, da Europa para o Brasil, aos 14 anos e só voltou a visitar sua terra natal aos 70 anos. Durante os últimos 10 anos de sua vida a única língua utilizada era o espanhol. Sua mãe morreu quando estavam no Brasil há pouco tempo e seu pai se casou com uma senhora brasileira e proibiu o uso do espanhol na casa. No fim da vida, a língua materna retorna com a força do retorno do reprimido. O interessante é perceber que o encontro com o que teria se desgarrado, pode voltar no real e ali o eu, outra vez, se revesti do manto da língua materna.

 

Poderíamos fazer uma hipótese de que o subversivo que nos “aborda” na migração seria encontrar-se, mais uma vez, com o inexplicável do vazio. Deparar-se com a perda da língua materna, pedir entrada na nova língua e, mais uma vez, ser barrado. Numa de suas poesias, Ana Martins Marques[8]  escreve:

 

“Fazer as malas é tarefa impossível:
aquele que ainda não partiu tem que colocar na mala
aquilo de que precisará aquele que vai chegar
A terra prometida a um será, no entanto, entregue a outro
A passagem comprada por um será usada por outro
E, de seu próprio álbum de família, olharão para ele parentes de outra pessoa
Quem está de partida arruma a mala de um desconhecido”

Creio que nenhum de nós que fez essa passagem, de um país a outro, de uma língua a outra, sabia que um Outro ali nos visitaria. O encontro com este desconhecido, para quem fizemos as malas, produz novas voltas significantes, com as quais não estávamos psiquicamente organizados para lidar. Somos analistas, no meu caso, estrangeiros, escutando o estrangeiro que surge e insiste em cada um de nós.

 

“O primeiro estrangeiro é aquele que está do outro lado, faz nossas fronteiras nacionais e o segundo é aquele que nos habita, que nos inquieta.”[9]

 

O fascínio do migrante talvez seja a possibilidade de uma reconstrução através do caminhar pelas bordas e escorregar nos buracos, voltar às bordas e assim seguir. Ocorre que, não escaparemos do estatuto de “visitantes permanentes”. Estaremos sempre de visita e buscando essa falsa pertença. Sempre ouvindo a pergunta “de onde você é?”, mesmo estando na esquina do seu apartamento, na cidade para onde migrou.

 

Esta é uma pergunta que sempre te coloca para fora. Sempre te coloca minimamente como refugiado, ou aquele que fugiu de novo. Como aquele que se equilibra nas bordas desta nova língua. Lacan, em seu seminário A Angústia diz: “O homem encontra sua casa num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos.  Esse lugar representa a ausência em que estamos.”[10]

 

Aqui, muito próxima à conclusão, me atrevo a dividir com vocês a pergunta: Será que poderíamos pensar em migrar como o quarto dos impossíveis freudianos? Será que a psicanálise segue sendo subversiva quando escutamos os migrantes   que se aventuraram na reinvenção deste novo Outro? Talvez o que é subversivo seja não temer o Real que nossos pacientes migrantes trazem na mala. Uma vez que, o Real, assim como a terra, se espalha como poeira.  Ele vai constituindo novos traços e deixando pelo caminho as marcas da passagem. Afinal: “Crise real ou imaginária se resolve…por engendrar uma nova forma simbólica.”[11]

 

Algo de subversivo poderá se constituir se pensamos a borda como defesa, se o analista notar e escutar as palavras que quase escapam nesta borda entre um país e outro, entre uma língua e outra, entre uma cultura e outra: neste interregno. Nesta escuta o analisante encontrará a habilidade do saber-ali-fazer com aquela outra borda sintomática que a repetição do vazio que acompanha a migração propõe.

 

Durante a pandemia, trabalhando com brasileiros que vivem em New York, as sessões apresentavam este aspecto da pergunta: o que estou fazendo aqui? Várias vezes escutei: Perco a vida no meu país e agora estou perdendo a morte também. Meus pais, meus irmãos, amigos, como faço para cuidar deles? A então morte sem intermitências abalou os lutos intermináveis realizados pelos migrantes. Fez com que todos sonhássemos com a primeira frase do livro As intermitências da Morte: “No dia seguinte ninguém morreu.”[12]


[1] Bishop, Elizabeth. Bishop: Poems, Prose, and Letters. Questions of Travel. The Library of America, 2008.
[2] Macé, Marielle. Siderar, Considerar: migrantes, formas de vida. Tradução: Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo. 2018. p. 53-54.
[3] Cassin, B. Nostalgia, When are we ever home? (Pascale-Anne Brault, Trans.). New York: Fordham University Press. 2016. p. 12. Tradução própria.
[4] Freud, S. Romances Familiares. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em 1906-1908). 1969. p. 243.
[5] Hamad, Nazir. Melman, Charles. Psicologia da Imigração. São Paulo, Instituto Language, 2019. p 11.
[6] Cassin, Barbara. Repousser les fronteires?  Èditions Gallimard, 2014. p. 16. Tradução própria.
[7] Período em que um estado ou país carece de soberano.
[8] Martins Marques, Ana. Risque esta palavra. Companhia das Letras, 2019. p. 49
[9] Hamad, Nazir. Melman, Charles. Psicologia da Imigração. São Paulo, Instituto Language, 2019. p. 136.
[10] Lacan, Jacques. O Seminário- A angústia. Livro 10 Aula 5 de dezembro 1962. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro 1981.
[11] Lacan, Jacques. Escritos. Subversão do sujeito e dialética do desejo no sujeito Freudiano. Editora Perspectiva S.A. São Paulo, 1978. p. 280.
[12] Saramago, J. As intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.