Uma chinela turca - narrativa, passagens e a outra cena
23 février 2006

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SERRANO PEREIRA Lucia
Cartel franco-brésilien de psychanalyse



O bacharel Duarte termina de dar o laço na gravata. É noite, o ano é 1850. Passa de nove horas, ele prepara-se para ir ver no baile, « os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que esse nosso clima, avaro deles, produzira. »

Nesse momento é interrompido, é anunciada a chegada do Major Lopo Alves. O major era um dos maiores chatos de seu tempo, mas amigo e companheiro de exército de seu finado pai. Não tinha como não recebe-lo.

Duarte se preparava para o encontro com Cecília, namoro de recém uma semana:

« Seu coração, deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. »

Duarte enfiou um chambre, encontra o major na sala com um rolo de papel embaixo do braço, olhos no ar, totalmente alheio à sua chegada.

– Vai sair? pergunta o major, – mas ainda é cedo, não? Nove e meia. O major brinca com o rapaz, se dá conta de que os preparativos são para o baile, mas não dá a mínima, o que quer é contar sua novidade.

« Dou-lhe uma notícia que você não espera. Saiba que eu fiz…fiz um drama. »

Um drama! Repete o jovem. O major explica que desde criança sofria desses achaques literários, o serviço militar não o curou. « A doença » voltou agora com força. Duarte faz os votos de sucesso e triunfo nessa estréia, quer se desvencilhar logo, quando vê o major « trêmulo de bemaventurança » desdobrando o rolo que trazia consigo e pedindo que o jovem, inteligente e lido, opinasse sobre a qualidade de sua obra.

Isso vai depressa, disse o major, sei o que são os rapazes e os bailes. Mas o que faz é convidar o jovem para se instalarem no gabinete

Para Duarte era indiferente o lugar do suplício, e o algoz não queria testemunhas. Consulta o relógio com melancolia, nove horas e cinqüenta minutos… Lopo Alves ao pé da mesa e Duarte afundado na poltrona de marroquim, decidido a não falar nada para ir depressa com a coisa.

O drama:

O drama era dividido em sete quadros. « Não havia nada de novo naquelas cento e oitenta páginas, a não ser a letra do autor » , no mais eram os lances do romantismo mais desgrenhado.

Logo no primeiro quadro uma criança sequestrada, … »um envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressucitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano no sétimo.  » No segundo quadro havia ainda a morte da menina, já com dezessete anos, « um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento »

Onze horas quando termina o segundo quadro, Duarte morto de cólera. Impossível ir ao baile, se o major morresse ali mesmo seria um benefício da Providência. Quando os « olhos carnais  » do jovem viam a grenha do major brilhavam em seu espírito os fios de ouro dos cabelos de Cecília, seus olhos, ouvia mentalmente a música, os passos no salão… O tempo voava, já dera meia noite, o baile estava perdido.

De repente, vê o major enrolando o manuscrito, cravando em si uns olhos odientos e maus e saindo arrebatadamente do gabinete. Perplexo, Duarte ouve o passo colérico do dramaturgo na calçada.

Minutos depois, o moleque vem anunciar ao bacharel nova visita, entra um policial, vem em função da denúncia de um delito grave, o homem vai dizendo. De que se trata ? qual a sua implicação no assunto? quer saber Duarte.

« – Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de haver subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela, Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias. » É sarcástico.

A chinela turca:

A chinela, segundo o policial, vale muitos contos de réis, é ornada com diamantes, singularmente preciosa. A dona a comprou de um judeu, em uma viagem ao Egito.

Mas o que importa é que foi roubada e a denúncia é contra Duarte, que não teve tempo de concluir nada, já na rua estava um carro, um homem gordo esperando, o colocam para dentro e o carro sai em disparada.

« – Ah! Ah! Disse o homem gordo. Como que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças loiras, casar talvez com elas…e rir ainda por cima do gênero humano. »

Meia torção:

Neste ponto nos encontramos por primeira vez com um inusitado na narrativa que poderíamos até então ter como linear. Como é que o policial poderia saber do desejo íntimo de Duarte sobre a moça? E essa relação moça/chinela?

Aqui, algo vira, na narrativa.

Os policiais que, na verdade, não são da polícia, conduzem Duarte de olhos vendados ao interior de uma casa por uma infinidade de corredores e escadas. Quando pode tirar a venda, encontra-se em uma sala, bronzes, espelhos, tapetes, opulência e elegância.

…a tal chinela era já agora mais que problemática. .. »

Duarte parece achar, então, uma explicação nova e definitiva. « A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival »

Nesse momento entra na sala um padre, atravessa a sala, sai por outra porta. Ele a essa altura não entende mais nada. É levado a outra sala, onde um homem velho o espera. Ele diz que o roubo da chinela foi apenas um pretexto para o que o vai acontecer ali. A chinela não foi roubada, não tem nenhum diamante, é, porém, turca, e nunca saiu das mãos de sua dona. Pede que tragam a chinela, um milagre de pequenez. Era de marroquim finíssimo, forrada de seda azul.

« Chinela de criança, não lhe parece? Disse o velho. – suponho que sim. – Pois supõe mal; é chinela de moça. – Será; nada tenho com isso. – Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona. – Casar! Exclamou Duarte. – Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela. »

A moça era uma imagem de poeta, uma criatura divina, vestido branco, « era loira, tinha os olhos azuis como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu, ou pareciam viver dele. »

Duarte diz que não tem vontade de casar. O velho afirma que ele vai fazer três coisas: casar, escrever um testamento – já que tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos – a noiva é a herdeira, e a terceira, engolir uma certa droga do Levante.

« Veneno! Interrompeu Duarte.

– Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu. Duarte, apavorado. Vem a noiva e o padre. « Levante-se! – Não! Não quero! Não me casarei!

É apontada uma pistola, Duarte suava e tremia, o padre ( que não era padre ) se aproxima e sussurra em seu ouvido: quer fugir? Vê aquela janela? Salte por ela e corra.

« Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, …atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo.  » Começou uma corrida vertiginosa, saltou muros e cercas, ia esbarrando nas árvores, as forças iam acabando, cortou a mão, o chambre prendeu-se em uma cerca de espinhos, por fim cansado ferido e ofegante cai nos degraus da última casa que encontra, olha para trás, o perseguidor já não está lá. Entra arrastando-se em uma sala, onde um homem está sentado, lendo o Jornal do Comércio. Cai numa cadeira, e reconhece o homem. Era o major Lopo Alves. « O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente: – Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro. « 

Duarte olha a mesa, as paredes, esfrega os olhos, o major lhe pergunta a opinião, Duarte responde -Excelente! O major observa « -Paixões fortes, não? – Fortíssimas. Que horas são? – Deram duas agora mesmo. »

O major vai embora, passado um tempo Duarte pensa consigo:

« Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. (…) provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco. »

O conto é A chinela turca, de Machado de Assis. A escolha de percorrê-lo aqui com vocês, mais ou menos no detalhe, é a tentativa de estabelecer um tecido em comum que me permita situar algo dos efeitos que a leitura me produziu, e que me parecem pontos valiosos na consideração do linguageiro como prática e invenção, seja na literatura ou na prática analítica, guardadas as diferenças.

Destaquei este conto, do conjunto da obra, por uma razão particular: A chinela turca faz parte da coletânea intitulada Papéis avulsos, que, na fortuna crítica de Machado de Assis é situada como reunindo os textos que inauguram o movimento de virada no estilo machadiano (junto com Memórias póstumas de Brás Cubas, no gênero do romance), trata-se do momento da inovação e de certa forma de estabelecimento do que vai ficar registrado como seu estilo.

Tomemos A chinela turca como um pequeno fragmento dessa reviravolta para situarmos a discussão psicanálise – narrativa – invenção.

Do encontro com a chinela turca:

Eu vinha de um mergulho no romance machadiano, por achar ali um desdobramento interessante sobre a questão do desejo, do olhar e da obliqüidade ( Capitu, olhar de cigana oblíqua e dissimulada). Acompanhava a leitura do romance tendo como pano de fundo os contos de Machado de Assis.

Quando li A chinela turca achei surpreendente. Pelo efeito, pelo equívoco. O que é mesmo que acontecia? Não saímos da leitura com muita certeza (a organização do conto no relato que faço a vocês já é mediada pela minha leitura, então, distante do impacto « da hora »). Se tratava de um sonho, um devaneio, uma brincadeira com os elementos do drama do major, como era mesmo o que a narrativa propunha? Foi preciso ler uma segunda vez. A pergunta era: por onde se produz esse efeito de vacilação? Havia algo na estrutura do conto, na forma pela qual se narrava.

Já não o « um narrador incerto » de D. Casmurro, mas um narrador de certa forma inquieto, em deslocamento, não fixado na descrição dos fatos, mas sim incluído, às vezes interpelando, « mostrando » direto para o leitor: Vê-de o bacharel Duarte…Notai que é de noite…

Ás vezes conduzindo a narrativa, ás vezes encostado, quase na pele do personagem, condensados -narrador e personagem incluídos na cena.

E nisto começa a tensão, trabalhada ao longo de todo o conto pelo fio do tempo que o narrador enuncia, recolocando a pressa, a urgência de Duarte e o enlevo narcísico do major:

O início é « Passa de nove horas(…) »; depois o major perguntando  » vai sair? Ainda é cedo…nove e meia…; às 21:55 é a melancolia, às 23 é a cólera, às 24 o baile está perdido, no final, duas horas da manhã, algo se pacifica com a saída que Duarte encontra para sua experiência o melhor drama está no espectador, e não no palco. E na leitura um dos efeitos é que nós somos tensionados pela perda que esse tempo vai anunciando.

Essa ênfase sobre o tempo é marcante. Fazendo uma relação com o contexto, com a história das narrativas, podemos lembrar que a marcação do tempo é um dos elementos apontados por Ian Watt como indicador da mudança na narrativa, expressão da modernidade e do individualismo: A escrita realista, a escala do tempo, a vinculação dos personagens na dimensão temporal, circunstâncias e pessoas específicas, tempo e espaço condensados e uma impressão de absoluta veracidade. Talvez mesmo o sonho ali, no conto, esteja, em parte, como um certo « subjetivismo realista ».

Mas há um outro trato do tempo, em A chinela turca, que não é da mesma ordem. É o que, a meu ver, vai trabalhar do lado do nervo, do nó do conto: a rapidez com que tudo evoluiu entre Duarte e Cecília, o desejo correspondido, mas ao mesmo tempo o que isso convoca de perturbador. Isso não aparece diretamente na história, mas certamente articula um avesso crucial para a trama, que não é nem um pouco evidente: precisa ser lido.

A rapidez de início: entre duas valsas, onde o coração é capturado, a declaração de amor dez minutos antes da ceia, resposta favorável depois do chocolate (o tempo por contigüidade, como com as valsas), três dias para a primeira carta, e indo assim, possível casamento antes do fim do ano. Tudo o que Duarte poderia desejar em matéria de acesso aos finos cabelos loiros e olhos azuis.

Mas o que Machado de Assis desdobra no tecido do conto é o de que essa voracidade no ir pegar o objeto, o acesso e do envolvimento em uma perspectiva de se ver diretamente com o objeto na mão, se podemos dizer assim, pode ser também muito perturbadora. É o desejo e ao mesmo tempo o desamparo, vide o texto de R. Chemama sobre o conto Uns braços, de Machado de Assis.)

Como é que isso se apresenta no conto? de forma paradoxal: no sonho, o casamento (que no início do conto é o auge da realização do encontro) aparece agora associado a um imperativo do Outro; a noiva / divina /Cecília, que segue sendo maravilhosa, é ligada ao desaparecimento dele próprio. Ela será a sua herdeira, ela o substitui, e ele fica condenado ao veneno e à morte.

Não dá para deixar de colher essa relação, esse paradoxo da subjetividade que o conto traz, o de que esse rápido acesso tão desejado pode ser vivido como fatal.

Genial no conto é que Machado inventa aí a expressão justa da equivocidade, o nome do veneno: passaporte do céu. Para o bem ou para o mal, o passaporte para o paraíso de gozo imaginado no encontro com Cecília, e ao mesmo tempo o documento para poder « passar dessa para a melhor », como se ironiza a morte. Aí encontramos algo da disponibilidade que opera em um escritor para com os significantes que lhe vem do campo do Outro. Da escrita que se produziu é quase como se pudéssemos dizer que Machado de Assis sabe muito bem que em se tratando de atingir, alcançar o objeto do desejo, há uma beira, uma borda de vazio que implica um desamparo, como referimos anteriormente. Saber da outra cena. Não explícito, sutil. Não descrito no conteúdo, mas tramado com a forma, o estilo, o trato linguageiro. Como se apresentam as condições para um tal efeito na escrita machadiana? Vamos voltar nisso logo mais.

Ainda no jogo da vacilação de sentido não podemos deixar de referir a constelação que envolve o termo de chinela turca. Quando Cecília é apresentada a nós, leitores, já se faz acompanhar de uma certa « raridade »: cabelos loiros e olhos azuis. A chinela turca porta também um elemento de estrangeiridade, de Outro sexo, de feminino. Joga com a condensação, os olhos azuis com o forro de seda azul, os cabelos de fios que brilham e o ornamento de diamantes da chinela. Há um tanto de erotismo misturado com o exotismo e o fascínio que o orientalismo exerce, principalmente dentro da perspectiva do romantismo.

Esse é outro dos movimentos que me parece fino e preciso na narrativa, em se tratando de uma « virada »: Todos os temas e desenvolvimentos do que poderíamos chamar a trama, o enredo, são exemplares do drama romântico, todas as histórias de embuçados, punhais, raptos, corredores e galerias, olhos vendados, damas divinas, e principalmente os testamentos e as heranças. O ultra-romantismo ou romantismo desgrenhado, como Machado de Assis ironiza. Nas novelas românticas não raro alguém vem de condição humilde e tem seu destino mudado pelo recebimento de uma herança, ou de uma carta, uma revelação. É clássico.

Machado trabalha com esses índices em todo o conto, poderia ser uma novela romântica, mas não é. Pela estrutura da narrativa, pela forma como o sonho é introduzido – os restos da narrativa do major compondo o movimento do sonho, tudo isso associado à tensão entre urgência e impossibilidade, o movimento do narrador que lembra em alguns momentos os filmes de Wim Wenders ou Woody Allen, onde a câmera parece estar nos ombros do cineasta, virando rápido, sacudindo dentro de um táxi que cruza a cidade, muito perto do lugar do protagonista. Há outras viradas mais: Duarte é acusado de ladrão, mas ele é também o que se deixa roubar na trama, roubado do acesso ao baile; empurrado ao lugar de espectador do drama. « O melhor drama está no espectador », ele conclui por ter tido um sonho original no lugar do drama chato, mas « o melhor » que ele situa não deixa de ser no ponto de passagem em que o espectador passa ao palco, e protagoniza o sonho, podemos dizer.

Assim, a saída, a resolução que dispensa o romantismo na chinela turca e que resulta , na obra de Machado de Assis como ponto de virada da sua escrita é determinada pelo jogo posicional, pelo trato com a linguagem, não se reduz ao drama, à novela. Ao contrário, talvez o que se reduza seja mesmo a novela.

O humor, a ironia ao modo machadiano é irresistível: o major nervoso para saber se faz alta dramaturgia, arte sublime, mas a sua suposta veia criadora (ao invés de uma inspiração romântica) vem é como uma espécie de reumatismo, funciona por achaques. É como um sintoma ( por que não? uma forma de estar com o Outro, afinal…).

O estilo tem a ver com o modo (singular) de estar na linguagem, de se deixar tomar por ela.

Quando Lacan lida com a questão do declínio do complexo de Édipo, ele vai dizer o que declina é a novela edípica, a novela enquanto o drama, o romance; o que segue, o que resta disso é a estrutura de filiação. Fica para cada um o trabalho subjetivo de « se achar na estrutura », um « se virar com isso ». Não é a hegemonia do romance. Como na análise, mesmo que seja sob transferência.

Mesmo na clínica, as operações que tem a ver com a prática da ética psicanalítica lidam com a criação, o surgimento do novo, mas desde uma perspectiva de destituição da idealização. Que surge de ter enfrentado algo da proximidade com a borda do real.

Um analisante de Lacan, Eric Laurent (que torna-se psicanalista), reconstrói a frase que ficou ressoando em seus ouvidos, por ocasião do processo de início de sua análise:

« Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma psicanálise. O que esta realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo, que o conto possibilita, produz efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber efeitos de estilo que poderão ser úteis a você. » (Laurent, 1992, p.36)

Aqui temos um elemento a mais para incluir nas questões do « estar na linguagem » em relação com a narrativa. Este fragmento permite pelo menos interrogar a mudança estética apontada, diferença entre o romance e o conto. Há algo que nos concerne aí, pensando a clínica?

É interessante lembrar que o romance, em seus fundamentos, tende a contar a história de uma vida, ou de uma trajetória individual, o percurso do herói, uma vida distendida ao longo do tempo. O conto é uma espécie de contramão, tende ao pontual, é um corte na pretensão totalizante.

Júlio Cortazar fala do conto de forma precisa e bonita: algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. O conto parte da noção de limite. Poderia se comparar na analogia com a fotografia (o romance, ao cinema). « Fotógrafos da categoria de um Cartier-Bresson ou de um Brassai definem sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla (…)

Numa fotografia ou em um conto de grande qualidade « o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura (…) em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. »

Ele comenta o dizer de um amigo ligado ao boxe: um romance ganha sempre por pontos, o conto ganha por nocaute.

Quanto ao limite e à contração, interessante considerar a experiência de Walter Benjamin. Ele escreve Crônica berlinense, texto ao estilo narrativa de memórias, contínuo; anos depois reescreve todas essas memórias, reminiscências, mas na forma de pequenos fragmentos, mudando totalmente a estrutura do escrito. Resulta em Infância em Berlim. J. Gagnebin comenta:

« Benjamin desiste pouco a pouco da forma autobiográfica clássica que segue o escoamento do tempo vivido pelo autor, uma forma já bastante questionada na Crônica Berlinense, para concentrar-se na construção de uma série finita de imagens exemplares, mônadas (para usarmos um de seus conceitos preferidos) privilegiadas que retém a extensão do tempo na intensidade de uma vibração, de um relâmpago, do Kairos. Estas miniaturas de sentido finitas porque o « eu » que nelas se diz não fala somente para se lembrar de si, mas também porque deve ceder o lugar a algo outro que não si mesmo. »

O relâmpago, o nocaute, a contração e o limite, tanto Cortázar como Gagnebin acentuam esse ponto de abertura em uma estrutura, que podemos pensar como referida à uma borda , articulação do sujeito com o Outro (ex. em Infância em Berlim, a colher de remédio se aproximando da boca do menino, as « bordas da colher povoadas com as súplicas da mãe ») .

O conto, nesse sentido, aparece como uma forma interessante para pensar, principalmente, pontualidade e leveza com relação ao romance que tem como horizonte um percorrido mais totalizante.

Quanto ao fugaz, não seriam esses cortes e limites pontuais, a cada vez, a cada operação fugaz de separação em uma análise, operações que recolocam a « separação entre a e menos phi », castração simbólica que se opera nas sessões e ao longo de uma análise, essa possibilidade de efeitos de estilo que se inventam e se disponibilizam?

Vamos levar a interrogação em torno dos efeitos de estilo na relação com a forma « conto » um pouco mais adiante. Assim como existem chinelas e chinelas, existem formas e formas, contos e contos.

A esse respeito, a forma na qual a narrativa é produzida, pode ser interessante um breve diálogo com Ricardo Piglia, escritor argentino que trabalha sobre as narrativas curtas, os contos, desde Poe, Tchecov, Kafka, indo até Borges. Ele desenvolve, sobre a forma no conto, duas teses:

1) primeira tese: um conto conta sempre duas histórias. Traz com exemplo uma anedota tirada de um caderno de notas de Tchecov: « Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se. »

Segundo Piglia, a forma do conto está condensada aí, na contramão do previsível e do convencional jogar- perder -suicidar-se. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa cisão paradoxal seria chave para definir o caráter duplo da forma do conto, que trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolve-la.

2) segunda tese: o conto é um relato que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto, mas uma história contada de modo enigmático. O conto narrando em primeiro plano a história 1(o relato do jogo), e construindo em segredo a história 2 ( o relato do suicídio). O efeito de surpresa seria a irrupção da história 2 sobre a primeira. A história secreta seria a chave da forma do conto e de suas variantes. Suas teses acentuam a dimensão da duplicidade e do enigma.

Piglia tem uma proposição interessante, não é nenhum ingênuo em seus desenvolvimentos. Mas onde ele centra o trabalho é na distribuição binária dos lugares em questão. Mas nós ficamos, com essa chave de leitura, inevitavelmente capturados na tentativa de sempre identificar o dois, a dupla. Acho que é uma parte do caminho.

O que penso que poderíamos avançar, pensando a partir da Chinela turca, « abertura do pequeno para o grande », então, é que ali se põe em movimento algo além do binário. Não tanto duas histórias, mas algo que se produz num momento como avesso.

A figura que me veio, na leitura desses contos (chinela turca e outros), foi a da banda de Moebius, essa figura topológica que Lacan nos apresenta.

Vou lembrar brevemente a situação dessa banda para propor ainda uma última observação. A partir de uma banda retangular comum, uma tira de papel retangular, operando uma meia torsão e colando as bordas sobre si, conseguimos uma superfície que apresenta uma série de fenômenos paradoxais. Jeann Granon-Lafont desenvolve todo um trabalho em seu livro « A topologia de J. Lacan », Marc Darmon em Ensaios sobre a topologia lacaniana. São referências. A banda de Moebius opera uma subversão em nosso espaço comum de representação. O direito e o avesso dessa fita passam a se achar em continuidade. O uso de « cara ou coroa » – ou seja, duas faces – fica aqui subvertido. O direito e o avesso passam a estar contidos um no outro.

A estrutura moebiana, com sua meia torsão, desarticula o duplo e o ultrapassa. O que é curioso é que se tomamos apenas uma parte da banda, ela apresenta perfeitamente a duplicidade do cara ou coroa, mas a banda em seu conjunto tem só uma face e uma borda. ( se percorrermos a superfície da banda com o dedo sem levanta-lo do papel, ao longo de uma volta estaremos no avesso do ponto de partida, e só depois da segunda volta estaremos novamente no ponto de partida. Interessante é que, nesse sentido, só um acontecimento temporal vai poder diferenciar o avesso e o direito).

Porque Lacan vai trabalhar tanto com essa banda de Moebius? Ele faz a relação dessa estrutura moebiana com a fala e o sujeito. É que a unilateralidade da superfície aponta que as formações do inconsciente vem na fala, se produzem no discurso sem atravessar nenhuma borda. Os lapsos, os esquecimentos, se produzem no interior do discurso, nos diz Marc Darmon. E a interpretação, na clínica, é um corte nesta banda, ao longo de todo o seu comprimento, resultando, aí sim, em uma banda de dupla face onde, por um momento, ocorre a surpresa da constituição do inconsciente como avesso.

Se pensarmos na forma do conto, na relação a essas possibilidades de representação conceitual, a tese de Piglia, com as duas histórias, teria mais proximidade com uma banda de dupla face, cada face uma história, é o cara ou coroa do exemplo. Mas teríamos que nos movimentar procurando um raso e um profundo, como um a priori. Como uma psicologia da profundeza, talvez. Se levamos em conta a subversão da duplicidade, a banda de Moebius, exterioridade e a interioridade estão articuladas.

Eu faço a hipótese de que no conto machadiano a linha de força, de tensão, joga com um efeito de queda, de avesso. Mais moebiano do que « cara ou coroa ». E que esses efeitos são produzidos pelo « como é narrado », ao modo de Machado produzir o nocaute ou a queda do raio, ponto de abertura.

Não quero produzir nenhuma forçagem, teríamos muitas mediações a fazer entre narrativa textual e a fala em análise, e afinal de contas um escrito não é uma superfície moebiana, mas se o que singulariza uma escrita tem relação com o estilo que ali se produziu, arriscaria pensar:

– que um efeito de avesso como o que encontramos em Chinela turca: desse saber de que a proximidade do objeto de desejo implica em uma borda de desamparo, funciona no estilo de Machado de Assis como nos evocando as relações do sujeito ao campo do Outro em seu funcionamento moebiano. Não é de duas histórias essa amarração(apesar de podermos identifica-las, se quisermos). É do saber inconsciente que se veicula em algo do estilo do autor. Passagens paradoxais. Assim como passagens entre o singular e o coletivo, em seus contos, ou mesmo passagens que concernem à posições fantasmáticas que ele recolhe no imaginário social e joga para dentro de sua ficção.

Para criar as condições de  » inventar-se em análise » é preciso que possamos estar implicados na trama da transferência, e ao mesmo tempo posicionados de maneira a poder dar conta dessas passagens paradoxais que constituem o estar na linguagem, só assim o desejo do analisando pode surgir, pode surpreender em seu próprio dizer.

Um bom conto de Machado, para mim, tem efeito arejador, no pensar nossas questões.

 

Nota bibliográfica

Assis, Machado de. Machado de Assis – Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.