Retórica do ódio: William Shakespeare, leitor do contemporâneo
03 avril 2024

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DE CASTRO ROCHA João Cezar
Cartel franco-brésilien de psychanalyse
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Aos alunos de graduação da UERJ

 

            À revelia?

 

            O Mercador de Veneza é uma peça inquietante. Ao que tudo indica, contudo, não foi esse necessariamente o propósito da composição de William Shakespeare. Basta recordar o título do texto de 1598, The Comical History of the Merchant of Venice, or Otherwise Called the Jew of Venice. No célebre First Folio, de 1623, a icônica primeira edição do teatro shakespeariano, a peça foi incluída na seção “Comedies”.

 

            Na acepção clássica, a trama da tragédia principia numa situação auspiciosa para concluir no pior dos mundos. Édipo, no início da ação dramática, é o todo-poderoso rei de Tebas; em seu fecho, um miserável que arranca os próprios olhos por não suportar a visão dos crimes hediondos que involuntariamente cometeu.

 

            A comédia, por contraste, tem como ponto de partida uma circunstância adversa, mas se encerra num autêntico happy ending, com todos os problemas devidamente solucionados. Por isso, Dante denominou sua obra-prima Commedia; afinal, transitar do Inferno ao Paraíso, atravessando o Purgatório, é a descrição exata de uma deriva afortunada.

 

            A História Cômica do Mercador de Veneza deveria narrar as desventuras iniciais do veneziano Antônio, o mercador, incapaz de honrar uma dívida, pondo sua vida em risco, até o final feliz, com papel de destaque para a inteligência de Pórcia na descoberta de uma solução tão improvável quanto astuta, à altura das heroínas shakespearianas em sua combinação de inteligência e beleza.

 

            No entanto, no meio do caminho tinha Shylock e a peça se transforma.

 

            Discurso de ódio?

 

            A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou, em maio de 2019, um documento para articular uma “Estratégia e plano de ação sobre o discurso de ódio”. A preocupação se justifica: com a onipresença das redes sociais no cotidiano planetário, as manifestações de ódio adquiriram proporções epidêmicas – veneno sem remédio à vista. Ao mesmo tempo, o documento reconheceu com honestidade intelectual: “Não há uma definição legal, internacionalmente aceita, de discurso de ódio, e a caracterização do que seja ‘odioso’ é polêmica e objeto de disputa”.

 

            Tudo se passa como se retornássemos ao dilema de Santo Agostinho, tal como apresentado no Livro IX das Confissões: “Que é, pois, o tempo? […] Se ninguém me pergunta, eu sei: porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”.

 

            De igual modo, expostos ao discurso de ódio, imediatamente sabemos do que se trata e repudiamos a expressão. Porém, não encontramos um conceito capaz de gerar acordo. No caso de Agostinho, a impossibilidade relaciona-se à estrutura do pensamento intuitivo, fundamental na experiência estética. Já no caso do discurso de ódio, as consequências são nefastas. Na ausência de definição inequívoca, não se pode propor uma lei que o caracterize enquanto conduta criminosa. A máxima do Direito Romano segue atual: sem lei anterior ao fato, inexiste crime; nesse caso, também não há pena. Logo, vige a impunidade e, em sua vigência, a extrema direita viceja. E conquista, na formulação precisa do Papa Francisco, corações, mentes e, sobretudo, mãos – dedos ágeis em telas sem trégua. E ganha eleições livres. E busca se perpetuar no poder corroendo as instituições democráticas que permitiram sua vitória.

 

Urgente, a pergunta insiste: mas, afinal, o que é o discurso de ódio?

 

 

Retórica do ódio

 

Arrisco uma hipótese: o discurso de ódio é a ponta do iceberg, cujo continente é a máquina sistemática de desinformação e monetização da extrema direita. Tal discurso é a explosão do inconsciente, o retorno do recalcado, a barbárie que perdeu o pejo de dizer o seu nome. Daí, a definição conceitual ser incerta, pois, se é difícil assinalar sua causa, evidentes demais são seus efeitos.

 

O continente-arquipélago da desinformação possui uma linguagem particular, pura escalada aos extremos da violência simbólica, reflexo de uma concepção bélica da existência, que vê no outro um adversário a ser eliminado. Mais grave: coloca em prática uma retórica, cuja eficácia levará a democracia a um apocalipse sem revelação.

 

Trata-se da retórica do ódio; dispositivo que aciona uma pedagogia cotidiana de desumanização do outro. O discurso de ódio somente é possível quando o oponente é reduzido a nada; nulificado, tudo que se faça contra ele, nada será. Eis a lógica demoníaca que preside cada um dos genocídios perpetrados ao longo da história. É obra da retórica do ódio essa assustadora metamorfose do sujeito em objeto descartável.

 

Como se opera o efeito? Uma vez que se trata de retórica, é possível reconstruir seu passo a passo, vale dizer, o percurso que conduz à desumanização do outro apenas em virtude de sua diferença. Olavo de Carvalho foi o responsável pela difusão da retórica do ódio.

 

Tudo começa com a paródia do nome próprio do adversário, com o claro propósito de reduzir o oponente a uma caricatura, desautorizando “preventivamente” sua fala. No instante seguinte, o outro é estigmatizado: o indivíduo se transforma em mero tipo: “esquerdopata”, “paulofreiriano” ou, anátema supremo, “comunista”. Agora, ele é silenciado; por que escutá-lo se sua completa desindividualização se consumou? Cenário pronto para o estágio final: a nadificação de tudo que não seja espelho. A violência já não conhecerá limites e escalará da agressão simbólica à eliminação física. Nas palavras de um Ricardo III redivivo nos trópicos também por isso tristes: “Vamos fuzilar a petralhada”.

 

E tudo, por quê?

 

            Hora de retornar ao Mercador de Veneza. Estamos na primeira cena do terceiro ato. Cansado de enfrentar o mais brutal antissemitismo no seu dia a dia veneziano, Shylock reage com um discurso ainda mais impactante no cenário contemporâneo:

 

E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? (Tradução de Carlos Alberto Nunes)

            Lição das coisas: Shylock obriga seu algoz a reumanizá-lo ao assinalar os traços que lhes são comuns. Antropologia fundamental, Terêncio radicalizado: a nenhum vivente outro vivente deveria ser alheio, já que compartilham idêntica fragilidade. No plano do corpo, a equivalência se impõe: “Se nos derdes veneno, não morremos?” Argumento irrefutável: cristãos ou judeus, todos estão igualmente sujeitos à finitude.

 

E, no entanto, a próxima pergunta promove o eterno retorno da escalada dos extremos na forma do comportamento mimético por excelência: “E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?” Inaugurado, o ciclo da vingança dificilmente pode ser interrompido. A retribuição violenta, que tem sua dinâmica intensificada pela lógica das redes sociais, é o combustível da retórica do ódio.

 

Na comédia de Ernst Lubtisch, uma sátira impiedosa do nazismo, To be or not to be (1942), Felix Bressart desempenha o papel de um ator judeu, Greenberg, que retoma, diante de oficiais do Führer, o discurso de Shylock, tornado denúncia antecipatória dos horrores do Holocausto.

 

No filme de Monique Gardenberg, Ó Pai Ó (2007), Lázaro Ramos, num momento de rara inspiração e força estética, apropriou-se do monólogo com uma diferença decisiva: à poderosa reumanização de si, não se segue o emprego da palavra-veneno, vingança, que implica sempre a desumanização do outro. A tensão se desanuvia: a cena conclui numa nova atmosfera.

 

Utopia concreta?

 

A Lei de Talião, tornada respiração artificial, favorece a sucessão de profecias fracassadas – as míticas (e cômicas) 72 horas do bolsonarismo golpista –, que paradoxalmente se renovam como forma de compensar o fracasso prévio.

 

Entenda-se o fenômeno: o cenário apocalíptico mantém a militância permanentemente mobilizada, além de aumentar o fluxo de monetização propiciado pela retórica do ódio. A radicalização política é um produto de nicho em busca de dezenas de milhões de brasileiros, reféns de poderosa dissonância cognitiva coletiva. O resultado é quase sempre tosco, mas sua preparação supõe um nível sofisticado de manipulação psíquica

 

Precisamos interromper o ciclo da vingança, inclusive se estivermos com saldo negativo na contabilidade perversa do ódio. A reumanização de si diante dos olhos do algoz implica também reumanizá-lo. Não é uma tarefa fácil, muito menos óbvia, mas talvez já não haja alternativas. Os versos enigmáticos de Friedrich Hölderlin, em seu poema “Patmos”, finalmente parecem ter encontrado sua vez e hora:

 

Perto está Deus

e difícil de ser tocado.

Mas onde há perigo

cresce também o que salva.

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