Porque o tratamento pela lei jurídica é insuficiente para o enfrentamento do ódio manipulado
04 octobre 2023

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CARVALHO DE ROCHA Eduardo
Cartel franco-brésilien de psychanalyse
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Tendo delimitado alguns elementos de estrutura que nos levaram a essas interrogações sobre certos efeitos no laço social do levantamento do recalque sobre o ódio, com a radicalização de suas manifestações, seja nos atentados terroristas, nas mobilizações dos recentes distúrbios de rua na França, na mobilização de simpatizantes e apoiadores nos distúrbios da invasão dos edifícios dos Poderes da República do Brasil, mas também episódios cada vez mais frequentes de “arrastões” em ruas e ônibus no Rio, pensei em trazer ao nosso debate um levantamento sobre o momento atual dessa situação entre nós no Brasil, e levantar a seguinte questão:

 

– Os trâmites institucionais usuais- isto é, os aparatos jurídicos e suas sanções – são suficientes para enfrentar os surtos de violência que eclodem em nossa sociedade?

 

Já desde algum tempo o mito de que o brasileiro é gentil e amigável, boa praça, amistoso e pacífico, caiu por terra. Os recentes levantamentos sobre a violência no país mostram que a violência é endêmica e está, principalmente, relacionada às guerras entre quadrilhas de tráfico (drogas, peças de carros, exploração predatória de recursos naturais), às formas violentas de atuação das forças policiais e milicianas, e, mais recentemente, à instigação ao ódio às diferenças e diversidades pelas redes sociais, e mais recentemente à eclosão de passagens ao ato com assassinatos em escolas/creches ou agressões a professores, aparentemente “coordenadas” também nas redes sociais.

 

Uma parte desse espectro é antigo, e pode ser tributário do processo de construção da sociedade brasileira, que foi desde sempre, marcado pela violência do colonizador explorador e devastador. Essa dimensão de que a coisa pública é de ninguém, ou dos mais fortes e poderosos, de certa forma sempre esteve em nossos interstícios. Sua temperança se deu, e ainda se dá, pelo viés de construção de uma via republicana, aqui e ali ameaçada por golpes militares instrumentalizados pelas elites econômicas. Mais recentemente, vimos surgir no cenário nacional, de uma forma muito forte e poderosa, a própria dimensão da destruição como política declarada de governo. O conflito, e mesmo a dominância de uma força política sobre outra, sempre fez parte do jogo. Contudo o que aconteceu com o bolsonarismo foi além dessa proposta de alternância do poder, e chegou a produzir fraturas em todos os segmentos da sociedade, desde os núcleos familiares aos meios de trabalho e de luta política. Fraturas que se mantêm abertas. Ganharam força política as narrativas governamentais de eliminação de adversários e/ou diferentes- por exemplo, o discurso de Bolsonaro no Congresso ‘lamentando’ que se tivesse eliminado alguns poucos militantes políticos durante a ditadura militar; a exaltação na campanha política do assassinato de Mariele Franco; politica bolsonarista de exploração devastadora da floresta amazônica e de seus recursos; o genocídio de populações indígenas, desconsideração para com os milhares de mortos e seus familiares por ocasião da epidemia de Covid; a disseminação de uma política de armamento da população pois “povo armado jamais será vencido”. Em suma, o que o bolsonarismo veio a dar forma e corpo foi ao ódio como instrumento de ação política e social, promovendo radicalmente a eliminação do discurso e da dialética como cimento social, e promovendo uma unificação da divergência/oposição com o ódio/eliminação. Não creio que seja excessivo dizer que vivemos uma política de terror, cujo objetivo maior era destruir por destruir. Destruir a educação pública como laica, a saúde como pública e universal, devastar e esgotar a floresta e os recursos minerais, matar os povos indígenas, ameaçar os poderes constitucionais, em especial o Supremo Tribunal Federal, subjugar as Forças Armadas com cargos políticos na administração, destruir a linguagem e a cultura, além disso, usar os lugares institucionais para benefício pessoal (rachadinhas, apropriação de presentes institucionais, dentre os outros). Digamos que essa política de terror também esteve presente nos anos de ditadura, mas talvez com a diferença de existir um projeto político-econômico em jogo naquela época, enquanto no período Bolsonaro só havia o ódio como política maior, tendo para isso se instalado na sede do Governo o que veio a ser conhecido como “gabinete de ódio”, responsável por divulgar notícias falsas e atacar adversários pela internet. Claro que tudo isso visava o aprofundamento do liberalismo econômico desenfreado.

 

Após as últimas eleições presidenciais o que se viu foi a manutenção do questionamento do resultado eleitoral e a insuflação de simpatizantes acampados ao largo de quartéis do Exército para “a resistência” que acabou culminando com a tentativa de golpe em 08 de janeiro, nessa passagem ao ato coletiva de destruição das Casas dos Três Poderes para a assunção do poder pelo “povo revoltado”. Diga-se de passagem, que nem a força e determinação dos verdadeiros rebeldes revolucionários que lideraram revoltas, Bolsonaro foi capaz de assumir. Ao contrário fugiu do país e esperou, talvez, que “a massa revoltada” lhe desse lugar. Nesse sentido seu ato lembrou um outro, o do ex-presidente Jânio Quadros quando em 1963 renunciou apostando que seria reconduzido de volta pelo “povo”.

 

Mas afinal, se estou particularizando esse período bolsonarista, também estou realçando outros fatos de nossa história em que golpes, quarteladas e trapalhadas políticas também estiveram presentes. Aliás, fato mais ou menos comum em democracias ainda frágeis. Então o que nos faz privilegiar esse período como especialmente marcado por certos fenômenos não apenas comuns às democracias mais frágeis, mas mesmo às democracias mais robustas e consistentes como a americana e outras européias? Ameaças são sempre renovadas a cada pleito eleitoral, quando da chegada ao poder de forças políticas não só conservadoras, mas sobretudo destrutivas, radicalmente destrutivas ao funcionamento do laço social, onde os apelos à xenofobia, ao racismo, e às políticas de proteção social são postas em questão.

 

Talvez esse seja nosso embaraço e contradição maior, nem sempre possível de ser enfrentado com a seriedade que carrega, ao contrário, quase sempre tratado com desprezo e despreparo. Como enfrentar de uma forma clara, direta e objetiva, sem hesitação ou relativização, as manifestações radicalizadas de ódio que visam a eliminação do outro, do Outro, do discurso, da linguagem?

 

Voltando à questão que propus acima: como tratar o desrecalcamento do ódio, sua emergência no social, de uma forma dialética que siga um caminho que ofereça alternativas à passagem ao ato? O que hoje pode servir de meio de temperança não mais aos conflitos, pois não me parece que sejam propriamente conflitos que se instalam dessa forma, e sim gozos desenfreados desencadeados e encadeados por algoritmos digitais, vozes e imagens que nos saturam?

 

Nós, psicanalistas, reconhecemos esses fenômenos e os enquadramos na ordem de psicoses sociais ou mesmo perversões sociais, são hipóteses, mas o que nossa prática nos ensina sobre “o que fazer com isso”?

 

Em relação ao Brasil creio que podemos dizer que uma resposta política foi encetada, produzindo uma certa inflexão em direção ao discurso, à linguagem, reintroduzindo uma certa barreira, um certo limite à essa política de ódio. Já durante a pandemia, passado o momento de perplexidade em que se superpunham o horror da pandemia mortífera e o dos discursos bolsonaristas, a sociedade resistiu e disse não ao horror. Ainda assim, por muito pouco os bolsonaristas avançariam para um novo governo. E muitos se instalaram nos poderes da república, ainda que de forma mais tímida. A caracterização dos atos de janeiro como terroristas e seu pronto enquadramento legal, assim como a investigação sobre outros atos de vários governantes servem para conduzir um enfrentamento necessário e dentro dos marcos legais da ordem jurídica. Contudo, e parafraseando um filme que fez história há alguns anos, o ovo da serpente continua sendo chocado. Vimos que mesmo após ter perdido as eleições presidenciais, e ser processado em várias instâncias na justiça americana, Trump ainda é considerado como o mais forte candidato do partido Republicano, e nada do que fez tira seu prestígio entre seus eleitores-fiéis. Do mesmo modo, com tudo de odiento e destrutivo que fez durante seu mandato, Bolsonaro perdeu as eleições por muito pouco, e seus eleitores-fiéis não parecem colocar em questão sua démarche. Ao contrário, esperam por sua volta. Não só, pois há uma sólida rede de apoio às suas posições que continua atuando, e tentando marcar posição em cenários os mais diversos.

 

Nesses nossos tempos há algo da ordem de uma adesão ao mais conservador e moralista que não parece ceder. É como se sem esse combustível do ódio não se pudesse mais viver, isto é, gozar. Terá isso lugar por estar sustentado numa lógica de massa, a mesma que permitiu Hitler existir, assim como Trump, Bolsonaro e outros a eleger seus inimigos a destruir? A psicologia das massas esclarece esses fenômenos da radicalização do ódio ou precisamos de outros instrumentos? Arrisco a dizer que esse ódio desembestado não se liga propriamente a um ideal como é o caso da psicologia das massas. Certas manifestações do ódio hoje se dão muito mais a partir de sua disjunção, de seu desintrincamento pulsional. Essa é uma via que podemos tomar de leitura. É a que fez Freud, e mais recentemente Hélène L’Heuillet. Trata-se de um ódio que vai por si mesmo sem precisar de um comando, de um ideal. Se há algum comando ele está em seu próprio gozo radical, em última instância, na destruição e morte do outro, ou mesmo de si próprio. É um ódio sem uma finalidade que não a da ‘realização’ de seu gozo.

 

Nesse sentido, os fatos que situei acima que serviram de caldo de cultura do Bolsonarismo, e, talvez, desses ‘gritos rebeldes’ das massas cujo lema maior é a destruição do constituído, do instituído, da política, da linguagem e do discurso, seriam assim tributários dessa desamarração entre ódio e o sexual, dessa liberação do recalque do ódio, que doravante pode tomar qualquer caminho de expressão e de realização.

 

Um exemplo bem recente de algo acontecido aqui no Rio de Janeiro. Há alguns dias uma aluna de um colégio importante da cidade agrediu sua professora em sala. E o motivo? Tratava-se de uma aposta que ela havia feito num grupo de internet, num app de rede social. O que importava era seguir o comando da ‘aposta’. Tenho ouvido sobre uma nova forma de monetização na internet: via realização de “desejos satisfeitos” online no corpo a partir de pagamentos feitos também online. Ou seja, uma sucessão de ‘apostas’ para que uma tarefa cada vez maior ou mais cruenta, ou mais perigosa, possa ser realizada. Por outro lado, professores também testemunham inibições maciças de alunos que não conseguem tomar a palavra sequer para articular um pedido ou mesmo uma queixa, em especial na presença de um outro real.

 

Precisei fazer essas voltas, creio, para dar lugar às minhas incertezas sobre esse momento de aparente ‘volta ao normal institucional’, “à volta da esperança” como dizem outros, que vivemos pois não me parece que os fenômenos que estamos constatando cada vez com maior prevalência possam ser manejados unicamente com a interposição da lei jurídica, da Constituição, e dos poderes constituídos. No ponto em que estamos onde a alteridade é esvaziada e mesmo anulada, quando não parasitada pelos algoritmos que regulam as formas e intensidade dos gozos, que operação pode ser pensada, e mesmo acionada, para restitui-la, se é que é de restituição de uma alteridade que algo viria nos socorrer? Se não, o que mais? Alguma sugestão?

 

Obrigado pela atenção.

 

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