O Homem de pedra e o fantasma sem lógica
03 novembre 2005

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PEREIRA-PINTO Maria-Rosane
International

O mito de Don Juan [1], difundido desde a antiguidade até nossos dias, sofreu todas as variantes históricas e estéticas que cada contexto de época lhe exigiu. Mas desde a Idade Média, um elemento permanece invariável: a presença e a função do personagem do homem de pedra. O « eterno menino », perverso sedutor encontra, no momento limite de sua trajetória, a famosa « estátua do comendador », pai de uma de suas belas seduzidas e que ele havia assassinado. O retorno desse pai morto, cuja estátua fúnebre Don Juan cinicamente convidara para jantar, é emblemático do limite do homem em relação a seus atos. À hora prevista, o « convidado de pedra »se faz presente e, apertando a mão de seu assassino anfitrião, o conduz aos infernos. Molière e Mozart [2] mostraram magistralmente a saga desse herói quase atemporal, colocando em cena a père-version [3] de Don Juan em sua mais plena humanidade.

Essa figura do homem de pedra nos interessa aqui, assim como a posição infantil perversa polimorfa de D. Juan, para refletirmos sobre uma questão da atualidade clínica: o repúdio, a recusa de realidade, funcionamento psíquico ao qual Freud chamou de Verleugnung para definir a perversão a partir de seu artigo sobre o fetichismo em 1927 [4], mas também como elemento constitutivo da clivagem do eu (Ichspaltung) em seus processos de defesa, conforme seu artigo de 1938 [5], onde ele não mais se contenta em situar a Verleugnung apenas na perversão enquanto estrutura, mas também enquanto um funcionamento psíquico presente na neurose.

Particularmente, trata-se aqui de pensar de que modo a recusa da realidade, essa dupla posição do sujeito de aceitar e repudiar, no mesmo movimento, a realidade que a ele se impõe, pode engendrar uma dificuldade na atividade psíquica do sujeito à qual Freud chamou de « fantasma », atividade esta que consiste em fazer correções na realidade frustrante e com isso sustentar o princípio de prazer, o que de certo modo equivale a « indenizar » a economia psíquica pelas renúncias impostas a ela pelo princípio de realidade. Considerando que a fonte do fantasma é o brincar infantil e que o adulto prolonga, pelo viès do fantasma, essa atividade psíquica através da qual a realidade lhe é suportável, pensemos também na questão da temporalidade psíquica a partir da qual o fantasma se organiza: ele se situa entre o desejo passado, a impressão presente e a projeção futura. E ainda, o fato de a realidade psíquica do fantasma se desdobrar a partir do que Freud chamou de « fantasmas originários », ou seja, a observação do coito parental, sedução, castração, não é sem conseqüências para a clínica pois sabemos o quanto é estruturante a possibilidade que a criança tem, com isso, de se servir de suas verdades pré-históricas para sustentar as lacunas de sua verdade individual.

Minha hipótese é de que uma precariedade dessas possibilidades pode se apresentar quando o sujeito se encontra enredado em uma posição de recusa, de repúdio da realidade que ele, ao mesmo tempo sabe que se impõe. Como servir-se de suas verdades pré-hitóricas, como construir a partir delas uma verdade individual fantasmática sem estar efetivamente inscrito, subjetivamente, na problemática prazer-realidade já que um desses termos é repudiado?

Parece-me que cada vez mais, deparamo-nos com essa dificuldade em nossas clínicas pois, mais do que nunca, os sujeitos que nos pedem ajuda estão na posição do « eu sei, mas mesmo assim… » [6], essencialmente repudiadora da realidade, como se o fato de sermos fundamentalmente seres de linguagem não nos colocasse por si só na lógica do interdito, do desejo. Vivemos em uma cultura da eterna criança, em cuja lógica, a exemplo de Don Juan, não inscrevemos a figura do homem de pedra, do limite. Sabemos que ela existe, mas mesmo assim…

No final dos anos 80, tomei em tratamento um menino de dez anos. Esse menino, com constituição física de uma criança de no máximo seis anos, franzino e pálido, chegou ao meu consultório com sua mãe e me impressionou o número de cicatrizes e curativos espalhados por seu corpo. O pedido de ajuda era na verdade uma exigência da escola. Não podiam mantê-lo inscrito sem tratamento porque ele estava « perigoso para ele mesmo », segundo o enunciado da direção da escola. Tratei de saber qual era o « perigo » e perguntei imediatamente o que significavam aqueles « ferimentos de guerra ». A mãe me responde que esse é o problema, ele sofre muitos acidentes. Quedas de escada com clavícula quebrada, chutes em marcos de goleira que lhe custavam um osso do dedo do pé quebrado, tropeços enquanto caminha que lhe custavam ferimentos no nariz. Em três semanas ele havia sido atropelado duas vezes nas imediações da escola, embora sem gravidade importante, ele apenas caiu e se esfolou, um hematoma aqui e ali mas enfim, sem fraturas importantes. Até mesmo quando ia apontar seu lápis ele conseguia passar a lâmina na ponta dos dedos. O último acidente tendo sido relativamente grave, pois ele « atravessou » a porta de vidro de um armário sem se dar conta que estava aberta e isso lhe custara uma intervenção cirúrgica dolorosa, com pontos hemorrágicos importantes e mesmo necessidade de correções plásticas, a mãe decidiu então buscar ajuda, apesar da exigência da escola ter sido feita meses antes.

Quanto a sua escolaridade, repetia o ano e corria o risco de ser mais uma vez reprovado. Desde os seis anos de idade, sofria de crises de « ausência » que eram atribuídas ao uso dos antiepiléticos que tomava. Antes do uso dos antiepiléticos, ele dormia pouco e mal pois tinha tremores, dores abdominais e suores noturnos intensos. Nenhum eletro-encefalograma acusou lesão cerebral, mas a fenomenologia indicava a medicação e efetivamente ele desde então dormia muito bem. Uma psico-pedagoga, um pediatra e um neuro-pediatra acompanhavam seu caso havia já algum tempo. Manifestava uma agressividade verbal e um desinteresse pelo aprendizado, uma recusa em acompanhar o trabalho escolar, comia muito pouco e lhe era absolutamente insuportável que lhe dissessem « não ».

Pergunto o que o pai pensa disso e a mãe me responde « não existe pai, meu filho é uma produção independente ». Era um pouco a moda nos anos oitenta, socialmente se ouvia isso com certa freqüência, mas clinicamente, pelo menos para mim, era a primeira vez. Reagi dizendo à mãe que isso era impossível, que se esse menino podia estar ali, se ele falava e até mesmo aprontava tantas peripécias, era porque sim, ela havia encontrado um homem com o qual o concebera e que ele tinha um pai.

Pergunto ao menino o que acontecia quando ele se acidentava e ele me diz « sei lá, nunca estou nem aí ».
Termino essa primeira sessão dizendo ao menino que se ele queria voltar ao meu consultório, se queria estar em algum lugar, era necessário que se mantivesse vivo pois eu não tinha como tratar uma criança morta, eu só poderia trabalhar com um menino vivo e que ele me parecia bastante « vivo » para entender o que eu lhe dizia. « Um morto não vai a lugar nenhum, um morto é apenas um nome na pedra de um cemitério », conclui para ele.

Antes de sair, a mãe me pede para escutá-la só, e marcamos uma sessão. O menino, então, intervém perguntando quando seria sua próxima vez.

Escutei essa mãe por quase dois anos e ela seguiu sua análise com outro colega. O menino permaneceu em análise comigo até os treze anos. Durante o período em que a escutei, o discurso dessa mãe ficou muito centrado em seu próprio romance familiar. Quando ela tinha onze anos de idade, seu pai, cujo prenome ela havia dado ao menino, havia desaparecido e jamais se soubera dele, nem se estava vivo ou morto.

Na época da concepção, ela havia tido mais de um amante e nunca quis certificar-se da paternidade pois nenhum deles era, na sua opinião, um pai viável. Ela era uma mulher independente, os homens lhe eram dispensáveis. Sabia que havia sido necessário o encontro, mas mesmo assim, não via necessidade de um pai para o menino, lhe parecia que estavam muito bem assim. Até nosso primeiro encontro, apesar de várias outras advertências, nunca havia pensado que seu filho pudesse estar em risco.

O menino, que é o caso em si, me dizia, no início do tratamento, que ele na verdade nunca sabia ao certo porque fazia ou não fazia alguma coisa. E os estados de « ausência »´ que pareciam causar os acidentes, ele explicava de uma maneira muito curiosa: « é como se eu saísse de meu corpo e ele não me obedecesse mais, ele faz o que bem entende quando eu não estou nele. Quando eu volto, já estou machucado. É a mesma coisa na aula. Quando eu falo ou presto atenção no que estão dizendo, meu corpo pode sair se machucando, então fico cuidando para isso não acontecer e não aprendo nada ».

O fato é que a entrada no dispositivo da transferência sob as condições que foram as da primeira entrevista, fez cessar os acidentes. Um ano depois o neuro-pediatra concluiu que ele não precisava mais dos neurolépticos e ele passou a ter as doenças de infância que antes nunca havia tido. Enfim se deixava « contaminar » por seus pequenos outros. As notas nunca foram brilhantes, mas ele conseguiu fazer uma escolaridade relativamente satisfatória, sem repetir mais suas séries.

Mas é importante assinalar que, logo que esses acidentes cessaram, ele passou a uma importante depressão. Em análise, ele interrogava muito a vida e a morte e tentava construir teorias. Interessava-se a ponto de ter desenvolvido a capacidade de leitura lendo obituários de jornal pois queria saber quantas pessoas morriam por dia na cidade e se eu as conhecia. Com o tempo, algo da ordem de um luto pareceu organizar-se como trabalho de análise. No decorrer do tratamento, ele conseguiu estabelecer conflitos de convívio e tinha mesmo enfrentamentos físicos com outros meninos. Narrava feito um Homero suas odisséias escolares. Também uma agressividade especular parecia instalar-se, havia um corpo e um sujeito. Ele não precisava mais « encarnar » o fantasma do corpo independente ou do espectro paterno para sua mãe, podia brincar de Outra coisa, pois não seria mais um eterno menino nem um menino eterno.

De fato, esse caso ensinou-me muito quanto à importância das primeiras sessões. Parece-me que a possibilidade que esse paciente teve de ingressar, no momento inaugural de sua análise, em um trabalho de elaboração de elementos mórbidos importantes, deu-se porque eu, de antemão, me coloquei na posição do « homem de pedra » para essa mãe donjuanesca e seu filho, ou seja, algo da presentificação da morte teve efeito ali mesmo. E esse registro da morte, não esqueçamos, é nosso maior referencial da linguagem. E também, quando eu « desmenti » o desmentido da realidade materna quanto à inexistência de pai, podia equivaler a dizer ao menino « tu estás aqui, falas, tens este corpo, estás vivo e podes morrer porque um homem e uma mulher te conceberam », de certo modo algo da experiência do estádio do espelho se recapitulou e ele pôde então, a partir daí, começar a assumir sua palavra e seu corpo.

Fundamentalmente, pode-se dizer que tudo isso pôde ter lugar porque a mãe suportara assujeitar-se ao Outro com sua decisão de pedir ajuda, de construir uma demanda a um terceiro. Esse deslocamento da posição materna possibilitou ao menino começar e prosseguir sua análise, ingressar na lógica do Édipo, sem a qual ele não poderia colocar em ato a sua realidade psíquica, e sustentar seu desejo. Isso exigia que o fantasma materno encontrasse a sua lógica, pois enfim, não há fantasma sem uma mãe em seu horizonte, mãe que possa formular uma versão do pai para sua criança.

(*) Psicanalista, membro da ALI

1 – A versão do mito à qual nos referimos aqui é a de Molière, « Dom Juan ». Ed. Flammarion, Paris, 1998

2 – Cfe. A versão de Mozart em sua ópera « Don Giovanni »

3 – neologismo de Jacques Lacan enviando ao termo francês « perversion »e à noção mesma da psicanálise, ao mesmo tempo em que envia aos termos de »père »( pai) e « version »( versão ), ou seja, uma versão do pai.

4 – S. Freud, Le Fétichisme( 1927), in »La vie sexuelle », Paris, P.U.F., 1969.

5 – S. Freud, Le Clivage du moi dans les processus de défense, (1938) in « Oeuvres complètes », Paris, P.U.F., 2000

6 – O. Mannoni, , « Je sais, mais quand même.. » in Clefs pour l´imaginaire ou l´Autre Scène, Éditions du Seuil, Paris, 1969