O cogito cartesiano e o ato psicanalítico
07 juin 2025

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Fernanda LEITE MACHADO
Journées d'études

Freud conta que em um dos sonhos de Descartes descritos pelo jurista e historiador Maxime Leroy (1873-1957) em seu livro Le philosophe au masque (1929), o filósofo, se arrastando, hesitante, chega ante os edifícios do célebre Collège Royal de La Flèche, onde estudara. Faz um esforço desesperado para entrar na capela e fazer suas devoções. Algumas pessoas passam, Descartes quer parar e falar com eles; observa que um deles carrega um melão e então um vento violento o empurra de novo para a capela. Sem saber ao certo se está dormindo ou acordado, Descartes interpreta o sonho: o melão que quiseram lhe oferecer no primeiro sonho significava, segundo ele, os encantos da solidão, “mas apresentados por solicitações puramente humanas”. O vento era o gênio maligno que o conduziu, à sua revelia, a um lugar para o qual antes ele tentava ir por decisão própria e com a ajuda de Deus. Por isso, Deus não permitia que ele avançasse mais, e que não se deixasse levar nem mesmo a um lugar santo por um espírito que não tinha enviado – embora ele estivesse convencido de que fora o espírito de Deus que lhe fizera dar os primeiros passos rumo a essa igreja. Seguindo a indicação de Freud, que fora solicitado por Leroy a examinar alguns sonhos de Descartes, como não dispomos de uma via que nos leve além da interpretação do sonhador, só nos resta aceitar a interpretação de Descartes. Freud, no entanto, acrescenta que embora a interpretação a respeito do melão tenha sido original, ela não é correta – “mas poderia ser uma associação de ideias que levasse a uma explicação exata” – associação que “poderia figurar uma representação sexual que ocupou a imaginação do jovem solitário”.[1]

 

Em outro fragmento de sonho, um homem desconhecido obriga Descartes a ler um trecho do poeta romano da Antiguidade Tardia, Ausônio, que começa com a seguinte frase: “É e não é.” É “semiacordado”, como afirma Leroy, que Descartes dá sua interpretação do sonho. Repetidamente ele se pergunta se dorme ou se está acordado. Leroy chega a descrever desta forma: “o Sr. Descartes, continuando a interpretar o sonho enquanto dormia (…)”. Império da contradição. Sabe-se que Descartes tinha acesso à possibilidade de indiferenciação entre o sono e a vigília, como revela sua hipótese do sonho, formulada na Primeira Meditação, para justificar seu método de não poder se fiar no mundo sensível: “(…) não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas suficientemente certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo”[2].

 

Temos aqui então um Descartes “semiacordado”, dividido. Temos a contradição própria ao inconsciente, essa capacidade que o inconsciente tem de não obedecer ao princípio de não-contradição: Descartes é forçado pelo gênio maligno a entrar na casa de Deus. Ele também é forçado a ler um poema que começa com a frase “É e não é”. Da mesma forma, na Segunda Meditação, temos um Descartes que subitamente cai em águas muito profundas, e diz que não pode nem firmar seus pés no fundo, nem nadar para se manter à tona.[3] E parece ser o mesmo Descartes que teme não poder “esclarecer as trevas das dificuldades que acabaram de ser agitadas”, agitadas por ele mesmo.[4]

 

No entanto, depois desse momento de suspensão, ele firma muito bem os pés em uma sólida base, garantida por um Deus bom e veraz – Deus, aliás, que se confunde com a própria razão, pois ele também garante todas as verdades matemáticas. Esse primado da razão liberou a entrada da ciência e, no mesmo golpe, excluiu o sujeito. A razão se impôs. Lacan diz que o cogito é o erro sobre o ser, um falso ato, na medida em que ele rejeita corpo (ao separar espírito e corpo, res cogitans e res extensa) – essa rejeição “é a grande Verwerfung de Descartes”.[5]

 

Mas, como no sonho de Descartes, como no campo do inconsciente, estamos aqui diante de uma complexidade, onde alguns movimentos acontecem simultaneamente. Aliás, essa é a lógica presente no tetraedro do ato analítico, essa figura que é tridimensional, que é uma figura no espaço, e não um retângulo desenhado, composta por vértices, não ângulos, figura difícil de ser apreendida por nossa intuição mais imediata, e que não é algo fixo, mas comporta um movimento, ou movimentos. Não são etapas, nem passos a serem seguidos para a realização do ato psicanalítico. O ato não é uma ação programada. Não há um método para o ato, como quis Descartes, para alcançar a verdade em toda a ciência.

 

Então, como estamos em um terreno de complexidade e de contradições, acontece de esse mesmo ato do cogito, dito falso, comportar “esse elemento particularmente favorável para nele recolocar o desvio freudiano”.[6] O pensamento do cogito é também o pensamento que rejeitou todo o saber. Lacan diz que se trata de ato cartesiano – esse ponto em que se realiza uma suspensão de todo saber possível.[7] Descartes se impõe a disciplina, o rigor, de tomar como falso tudo o que ele não puder demonstrar ser verdadeiro. E, embora longe de ser um iconoclasta, através desse ato, ele coloca em questão todo o saber da tradição, todo o saber de seus mestres. Descartes anuncia seu método na Primeira Meditação: “[…] eu me dedicarei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas as minhas antigas opiniões.” [8] No seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan utiliza a palavra “ascese” para falar da certeza com a qual Descartes se encontra nesse ponto de dúvida, e observa que ela deve ser repetida a cada vez, que não está garantida de uma vez por todas.[9] No seminário do Ato, ele fala do cogito como “ascese lógica”.[10] O próprio Descartes insiste na necessidade dessa repetição. A respeito do ato de recolocar o inconsciente, Lacan pergunta: “Será que é necessário para o psicanalista recolocá-lo a cada vez?”[11]

 

Acontece também de essa Verwerfung primordial instaurar um vazio, esvaziar o céu, fraturar o cosmo. Isso instaura a ciência, mas não apenas. A partir de então, temos também, como diz Jacques Nassif na sessão de 28/02/1968 do seminário de Lacan, a convite deste, a possibilidade do modelo vazio da alienação: S (A) barrado. A função do terceiro não está excluída do cogito, o Outro está lá, e agora desprovido de todo saber. Pode-se interrogar, aqui, se se trata da alienação à qual se chega tendo atravessado uma análise – queda do sujeito suposto saber. O cogito cartesiano guarda então essa possibilidade, inaugura, abre o caminho para essa possibilidade. Mas ainda se coloca a questão: por que a negação sobre o cogito e não o cogito ele mesmo, uma vez que essa potencialidade está lá, no próprio cogito? Podemos colocar também a questão de saber se se trata aí da negação do cogito, como uma eliminação, e, com isso, impõe-se uma questão que é sobretudo clínica: a posição do cogito é superada de uma vez por todas?

 

Nassif, em sua intervenção na sessão do seminário, indica que fazer incidir a negação sobre o cogito resulta em constatar as consequências do cogito – que podem ir da descoberta newtoniana ao fato de que a res cogitans se torna não um sujeito, tampouco um “eu”, mas uma combinatória de notações – a pura razão. Seria, segundo ele, uma forma de traduzir essas consequências, “escrevendo que não há Outro”, que não há esse lugar garantidor da verdade. Ainda que a reunião do “eu penso” e do “eu sou” seja necessária. Deve haver sobre ela essa negação fundamental. Podemos perguntar se a ausência de negação seria conceber o cogito talvez como o próprio Descartes o tenha feito, ou seja, acreditando nesse Outro garantidor, nesse Outro que sabe, no sujeito suposto saber. Mas… não é assim mesmo que se chega e que se mantém por algum tempo na análise? Não é esse mesmo o ponto de partida? Chegar ao vazio desse Outro não seria justamente a travessia de uma análise?

 

Seja lá como for, o tratamento que Lacan dá ao cogito no tetraedro não se reduz à incidência da negação. Há algo fundamental aí que é a conjunção disjuntiva. “Ou eu não penso ou eu não sou”. Escolha forçada e inaugural do sujeito, alienação fundamental, o lado necessariamente escolhido é o “eu não penso” – sem pensar, me asseguro da continuidade de meu ser. É desse ponto que se parte. Talvez a negação e a disjunção não indiquem uma superação definitiva do cogito, mas uma forma de revelar sua presença e toda a complexidade que lhe é própria.

 

 


[1]FREUD, S. Carta sobre alguns sonhos de Descartes. 1929.

[2] DESCARTES, R. Méditations. In: Oeuvres et Lettres. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1953, p. 269.

[3] Ibid., p. 274.

[4] Ibid., p. 272-3. “(…) uma certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e temo despertar dessa sonolência, por medo de que as vigílias laboriosas que sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma clareza e alguma luz no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas.”

[5] LACAN. O ato psicanalítico. Lição de 10 de janeiro de 1968.

[6] Ibid. Lição de 17 de janeiro de 1968.

[7] Ibid.

[8] DESCARTES, op. cit., p. 267. “Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que me proporcionei um repouso assegurado em uma pacífica solidão, eu me dedicarei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse propósito, provar que elas são todas falsas, o que talvez eu nunca conseguisse levar a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente me impedir de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo para duvidar que eu nelas encontrar, bastará para me fazer rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que eu examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, porque a ruína dos fundamentos leva consigo todo o resto do edifício, irei me dedicar primeiro aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.”

[9] LACAN. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Lição de 3 de junho de 1964.

[10] Id. O ato psicanalítico. Lição de 6 de março de 1968.

[11] Ibid. Lição de 10 de janeiro de 1968.