O ato psicanalítico implicaria um novo tipo de negação?
07 juin 2025

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Mario FLEIG
Journées d'études

Na lição de 6/3/1968, Lacan se refere a “uma nova forma de negação”, que seria a que ele produziria. A questão se põe a partir da postulação freudiana de que o inconsciente não conhece a contradição. Sabemos que, segundo a lógica aristotélica, a forma extrema de oposição, ou seja, de negação, se encontra na contradição, a proposição universal está em contradição com a particular negativa. Entretanto, isso dá conta da negação apenas no nível do enunciado. A negação formulada por Freud, a Verneinung, ao incidir aparentemente no enunciado toca no sujeito da enunciação. Cabe lembrar também que a escolha de muitos conceitos fundamentais propostos por Freud se ancoram em uma composição própria da língua alemã: Verschiebung, Verdrängung, Verwerfung, Verdichtung, Verneinung, Verarbeitung, Versagung, Verleugnung. O prefixo “ver” corresponde aqui ao prefixo “des” em português, o que conota negação.

 

Das muitas vias abertas pela busca de Lacan, cabe nos referirmos, em primeiro lugar, à negação presente na lógica dos estoicos: a estrutura da dupla negação, como ele nos reapresenta nessa lição: “não há homem sem que haja mulher”; “não há homem que não seja sábio”. Dizer que a dupla negação corresponde a uma afirmação não vem ao caso, pois o que se põe aqui é a incidência (Einfall), a divisão entre o enunciado e a enunciação. Esta se presentifica no subjuntivo: que seja; que haja.

 

“Não há homem que não seja sábio”, mesmo que corresponda a uma proposição universal afirmativa, « o sujeito é essencial e fundamentalmente esse ‘não há “não há traço que não seja vertical”, contando com a casa superior à direta vazia, onde não há traço algum (Conforme a leitura de Lacan do quadrante de Peirce). “É aí que se situa o sujeito, porque aí não há traços”.

 

Uma segunda via localizamos um tempo depois, na homenagem que Lacan presta ao Dr. Daumézon, em 1972, O aturdito, a partir do enunciado: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”. Esse enunciado, ainda que em forma universal, contém o subjuntivo que modula o sujeito da enunciação. Modula, ou seja, tem valor modal e assim se apresenta a modificação do atributo do enunciado, segundo os modos do possível, do necessário, do contingente e do impossível. Entretanto, ele iniciara com a expressão: “soit passer la présentation”, “ou seja, passar a presentação”. Aqui já se descortina algo que se dá no movimento do dito ao dizer, do “que se diga” ao “que se diz”, da presentação à representação, no movimento das voltas dos ditos. “Assim, o que é dito não vai sem o dizer.” Logo se poderá ver como isso se liga com a questão da negação. O dizer escapa ao dito, fica esquecido, como um resto encoberto. “O dizer se demonstra por escapar ao dito.” Aqui se evidencia que o dizer de Freud brota do dito inconsciente (sintomas, lapsos, chistes, sonhos…), “na via em que o ab-senso designa o sexo.” Essa via descortina o “muro do impossível, que se enuncia no ‘não é isso’, que é o vagido do apelo ao real: a incompletude, a inconsistência, o indemonstrável, o indecidível. “O dizer vem de onde ele [o real] a [a verdade] comanda.” O giro dos discursos, do mestre, do histérico, universitário e do analista circunscrevem pelo impossível que não há rapport sexual. Contudo, esse “não há” não basta para sustentar a negação, mas “apenas o dizer não há” (“seulement le dire que ‘nya’”).

 

Nesse caminho, ele encontra em Demócrito o apoio decisivo.

 

“Mas que se ria disso (“Mais qu’on en rie [rien rie en en rie] »), a língua a que sirvo se veria refazendo o ‘joke’ de Demócrito sobre o μηδέν [mèden : zéro], ao extraí-lo, pela queda do μή da negação, do nada que parece invocá-lo, como faz nossa banda consigo mesmo em seu socorro. Demócrito, como efeito, nos presenteou com o ’ἄτομος do real radical [a], ao elidir o ‘não’, μή, mas em sua subjuntividadade, ou seja, esse modal cuja consideração a demanda refaz. Com o que o δέν foi realmente o passageiro clandestino, cuja morte [clam [()]] cria agora nosso destino. [Sa]”

 

Em outro lugar ele assim se remete da mesma forma a Demócrito: “Não é o μηδεν [meden : zero] que é essencial … é o un δεν [sem]. … Ele não disse ἕν [um] para não falar do ὄν [on : pronome possessivo, seu], ele disse o que? Ele disse, repondendo à questão que era a nosssa hoje, a do idealismo, nada, talvez? Não, talvez nada, mas não nada. » (12/2/1964). O que poderia ser o “talvez nada”? Não seria algo como menos que nada?

 

E para concluir, outro caminho importante para formalizar um novo tipo de negação ele o apresenta na noção de deslocamento da negação por meio da modalização do “não rapport sexual”. Vejamos como ele apresenta esse deslocamento da negação:

 

Mas a apreensão da contingência tal como eu já a encanei nesse “para de não se escrever”, quer dizer, de algo que, pelo encontro, mas o encontro, é preciso dizê-lo, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço de seu exílio, não como sujeito, mas como falante, do seu exílio desse rapport, mas não seria o  o mesmo que dizer que é somente pelo afeto que resulta dessa hiância que algo se encontra, – em todo caso onde se produz o amor – que pode variar infinitamente quanto ao nível do saber mas que, por um instante, dá a ilusão de que o rapport para de não se escrever?

 

Ilusão de que algo não somente se articula, mas se inscreve, se inscreve no destino de cada um, pelo que, durante um tempo, um tempo de suspensão, o que seria o rapport encontra, no ser que fala, seu traço e sua via de miragem. … O deslocamento dessa negação, a saber, a passagem da negação do “para de não se escrever” ao “não para de se escrever”, da contingência à necessidade, é aí que está o ponto de suspensão a que se agarra todo amor. [« ne cesse pas de ne pas s’écrire » (l’impossible du réel) → « cesse de ne pas s’écrire » (le contingent de la rencontre) → « ne cesse pas de s’écrire » (le nécessaire de l’amour)]. Todo amor, por só subsistir pelo “para de não se escrever”, tende a fazer passar a negação ao “não para, não para, não parará de se escrever”. Tal é o substituto que – pela via da existência, não do rapport sexual, mas do inconsciente, que dela difere – constitui o destino e, também, o drama do amor. (Lacan, J. Lição de 26/6/1973)

 

Enfim, parece-me que Lacan mantém sua promessa e nos apresenta, no que aqui recortei, algumas faces do novo tipo de negação implicada na postulação freudiana do inconsciente.