Escolhi este ano como tema, o ato psicanalítico. É um estranho par de palavras, que, para dizer a verdade, não tem sido usado até hoje. Certamente, os que tem seguido há um certo tempo o que enuncio aqui, podem não estar espantados com o que introduzo com estes dois termos.
Aquilo com que se encerrou meu discurso do ano passado, no interior desta lógica do fantasma da qual tentei apresentar aqui todos os contornos, os que me ouviram falar em um certo tom e em dois registros daquilo que pode, daquilo que deve querer dizer o termo igualmente duplo do ato sexual, estes podem sentir-se, de algum modo, já introduzidos a esta dimensão que representa o ato psicanalítico. Entretanto, é preciso fazer como se uma parte desta assembléia nada soubesse disso e introduzir hoje do que se trata neste emprego que proponho. A psicanálise, diz-se pelo menos em princípio, supõe-se, ao menos pelo fato de que vocês estão aí para me ouvir, que a psicanálise, isso faz alguma coisa. Isso faz, isso não basta, é essencial, está no ponto central, é a visão poética propriamente dita da coisa, a poesia também, isso faz alguma coisa. Observei em outro lugar, assim de passagem, por ter ultimamente me interessado um pouco pelo campo da poesia, quão pouco temos nos ocupado com o que isso faz e a quem, e sobretudo, – por que não? – aos poetas.
Talvez indagar sobre isso fosse uma forma de introduzir em que consiste o ato na poesia. Mas isso não é nosso assunto hoje, já que se trata da psicanálise, que faz algo, mas certamente não ao nível, no plano, no sentido da poesia.
Se devemos introduzir, e necessariamente ao nível da psicanálise, a função do ato, é na medida em que este fazer psicanalítico implica profundamente o Sujeito. Que, para dizer a verdade, e graças a essa dimensão do sujeito, que renova para nós completamente o que pode ser enunciado do tema como tal, e que se chama o inconsciente, este sujeito, na psicanálise, está, como já formulei, colocado em ato.
Lembro que já tinha colocado esta fórmula a propósito da transferência, dizendo, num tempo já antigo e em um nível de formulação ainda aproximativo, que a transferência não era outra coisa senão a colocação em ato do inconsciente. Eu repito, foi apenas uma aproximação e o que teremos que desenvolver este ano sobre esta função do ato da psicanálise nos permitirá dar a esta fórmula uma precisão digna dos numerosos passos e, assim o espero, alguns decisivos, que pudemos fazer desde então.
Aproximemo-nos simplesmente pela via de uma certa evidência, se nos atemos a este sentido que tem a palavra ato, que pode se constituir – em relação a quê?, deixemô-lo de lado – pode constituir um franqueamento, é certo que encontramos o ato na entrada de uma psicanálise. É, afinal, algo que merece o nome de ato de se decidir, com tudo o que isto comporta, de se decidir a fazer o que chamamos uma psicanálise. Essa decisão comporta um certo engajamento. Todas as dimensões que ordinariamente são aceitas, no uso comum, no emprego corrente desta palavra ato, nós as encontramos aí. Há também um ato que pode qualificar-se, o ato pelo qual o psicanalista se instala como tal, eis algo que merece o nome de ato, até o ponto, inclusive, em que este ato possa inscrever-se em algum lugar: Sr. Fulano de tal, psicanalista.
Na verdade, não parece insensato, desmesurado, fora de propósito, falar de ato psicanalítico da mesma maneira que se fala de ato médico. O que é o ato psicanalítico enquanto tal? Poder-se-ia dizer que isso pode inscrever-se sob esta rubrica no registro da Previdência Social. Será o ato psicanalítico a sessão, por exemplo? Posso perguntar em que ele consiste. Em que tipo de intervenção. Já que, em todo o caso, não se redige uma prescrição. O que é o ato propriamente dito? Será a interpretação? Ou será que é o silêncio? Ou o que quer que seja que vocês queiram designar nos instrumentos da função.
Mas, na verdade, aí estão esclarecimentos que não nos fazem de forma alguma avançar, e para passar ao outro extremo do ponto de apoio que podemos escolher, para apresentar, para introduzir o ato psicanalítico, enfatizaremos que é precisamente disto que falamos na teoria psicanalítica. Por outro lado, não estamos ainda em condições de especificar este ato de forma tal que possamos, de alguma maneira, estabelecer seu limite com aquilo que se chama pelo termo geral e, na verdade, inusitado nessa teoria psicanalítica: a ação.
A ação, fala-se muito dela e ela tem um papel de referência. Um papel de referência, aliás, singular, uma vez que além disso, só para ilustrar, servem-se dela com grande ênfase, a saber, quando se trata de dar conta, quero dizer, teoricamente e para um campo bastante grande de teóricos que se exprimem em termos analíticos, para explicar o pensamento, como por uma espécie de necessidade, de segurança, por razões das quais teremos de nos ocupar, não se quer fazer do pensamento uma entidade que pareça demasiadamente metafísica, tenta-se dar conta deste pensamento sobre um fundamento que, a esta altura, espera-se que seja mais real, e assim nos explicam o pensamento como representando algo que se motiva, que se justifica por sua relação com a ação, por exemplo, sob a forma de uma ação reduzida, uma ação inibida, uma ação esboçada, um pequeno modelo de ação, e mesmo que haja no pensamento algo como um tipo de gustação daquilo que a ação que ele suporia, ou que ele torna imanente, poderia ser.
Esses discursos são bastantes conhecidos, não preciso ilustrá-los com citações, mas se alguém quisesse examinar mais detidamente o que dou a entender, eu evocaria não apenas um célebre artigo, mas todo um volume escrito sobre o assunto pelo Sr. Rappaport, psicanalista da Sociedade de Nova York. O que é surpreendente é que, seguramente, para quem se introduz sem preconceitos nessa dimensão da ação, a referência em questão não me parece mais clara do que aquilo a que se refere, e que esclarecer o pensamento pela ação, suporia talvez que se tivesse inicialmente uma idéia menos confusa do que as que se manifestam nessas ocasiões, sobre o que constitui uma ação, uma vez que uma ação parece, se meditarmos sobre isso um instante, supor em seu centro a noção de ato.
Sei bem que há uma maneira que é também aquela à qual se agarram, quer dizer, apóiam-se energicamente os que tentam formular as coisas no registro que acabo de mencionar: a de identificar a ação à motricidade. É necessário fazer, aqui, no início do que introduzimos, uma operação, chamem-na como quiserem, de simples elucidação ou de varredura, mas ela é essencial. Com efeito, é sabido – e afinal de contas, meu Deus, por que não aceitável? – que se queira aqui aplicar, de um modo que é admitido por ser de rotina, obedecer, ou mesmo somente fazer semblante de obedecer à regra de não explicar o que se continua a chamar, aliás nem sempre com tanto fundamento, o superior e o inferior; de não, digo eu, explicar o inferior pelo superior, mas – como se diz, não se sabe mais agora exatamente por quê, que o pensamento é superior – partir deste inferior que seria a forma a mais elementar de resposta do organismo, a saber, este famoso círculo cujo modelo dei a vocês sob o nome de arco reflexo, ou seja, o circuito que se chama, segundo os casos, estímulo-resposta, quando se é prudente, e que se identifica ao par excitação sensorial, qualquer que ela seja, e desencadeamentos motores que desempenham aqui o papel de resposta. Além do que, nesse famoso arco, é bastante certo que a resposta não é, de modo algum, forçosa e obrigatoriamente motora mas que, desde logo, se ela é, por exemplo, excretória, e mesmo secretória, que a resposta seja isso: que isso molhe, pois bem, a referência a este modelo para nele situar, para nele tomar como o ponto de partida o fundamento da função que podemos chamar de ação, aparece certamente como muito mais precária. De resto, pode-se notar que a resposta motora, se a restringimos apenas à ligação definida pelo arco reflexo, tem verdadeiramente apenas poucas condições para nos dar o modelo do que podemos chamar ação, uma vez que o que é motor, a partir do momento que vocês o insiram no arco reflexo, aparece tanto como um efeito passivo, quanto como uma pura e simples resposta aos estímulos, resposta que não comporta nada mais que um efeito de passividade.
A dimensão que se exprime em uma certa forma de conceber a resposta como uma descarga de tensão, termo que é igualmente corrente também na energética psicanalítica, nos apresentaria então a ação como nada mais que uma conseqüência, até uma fuga consecutiva a uma sensação mais ou menos intolerável, digamos no sentido mais amplo de estímulo, na medida em que aí façamos intervir outros elementos além dos que a teoria psicanalítica introduz sob o nome de estimulação intermitente.
Estamos então seguramente em uma postura de não podermos situar o ato, nesta referência, nem na motricidade nem na descarga, então é preciso, ao contrário, perguntar-se a partir de agora, por que a teoria tem e ainda manifesta uma inclinação tão grande a tomá-las como apoio, para nelas encontrar a ordem original onde se instauraria, donde partiria, onde se instalaria como uma duplicação[1], a do pensamento.
É claro que só faço esse lembrete porque teremos que nos servir dele. Nada do que se produz na ordem da elaboração, por mais paradoxal que se apresente quando visto de determinado ângulo, não deixa, entretanto, de nos sugerir a idéia de que exista aí alguma motivação para sustentar esse paradoxo, e que desta motivação mesma – eis aí o método que a psicanálise jamais abandona – desta motivação mesma possamos tirar alguns frutos.
Que a teoria então se apóie ocasionalmente sobre algo que ela, precisamente a teoria analítica, é a mais indicada para saber que é apenas um curto-circuito em relação ao que é preciso estabelecer como estatuto do aparelho psíquico, que não apenas os textos de Freud, mas todo o pensamento analítico, só possam se sustentar colocando na defasagem, no intervalo, entre o elemento aferente do arco reflexo e seu elemento eferente, esse famoso sistema Ψ dos primeiros escritos freudianos, mas que, não obstante, ela tenha a necessidade de manter o peso nesses dois elementos – isso certamente é testemunho de algo que nos incita a delimitar seu lugar, digo, da teoria psicanalítica em relação ao que podemos chamar, de modo mais geral, a teoria fisiologizante relativa ao aparelho psíquico. É claro que vemos surgir aqui um certo número de edifícios mentais fundados, em princípio, sobre um recurso à experiência e que tentam usar, servir-se deste modelo primeiro dado como o mais elementar, embora o consideremos ao nível da totalidade de um micro-organismo, [o] processo estímulo-resposta ao nível da ameba, por exemplo, fazendo dele de alguma forma uma homologia, a especificação para um aparelho que concentraria, pelo menos num certo ponto, poderosamente organizador, da realidade sobre o organismo, a saber, ao nível deste arco reflexo no aparelho nervoso uma vez diferenciado.
O que temos de dar conta nesta perspectiva é que esta diferença persista em um nível, em uma técnica, a psicanálise, que parece ser, propriamente falando, a menos apropriada para recorrer a ela, dado o que ela implica de uma dimensão inteiramente outra, de se opor, com efeito, radicalmente, a esta referência que resulta de uma concepção manifestamente capenga do que pode ser o ato, não satisfatória de uma maneira interna, completamente oposta, com efeito, ao que temos a ver, a esta posição da função do ato que evoquei de início, sob seus aspectos de pura evidência, e que se sabe bem que é a que nos interessa na psicanálise.
Falei há pouco de engajamento, seja do analisado ou do analista; mas afinal, por que não colocar a questão do ato[2] de nascimento da psicanálise, pois na dimensão do ato vem logo à baila esse algo que implica um termo como este que acabo de mencionar, a saber, a inscrição em algum lugar, o correlato de significante que, na verdade, não falta jamais no que constitui um ato. Se posso caminhar aqui de um lado para outro, falando a vocês, isso não constitui um ato, mas se um dia ultrapassar um certo limiar em que me coloque fora da lei, nesse dia minha motricidade terá valor de ato.
Adiantei aqui, nesta mesma sala, que é simplesmente recorrer a uma ordem de evidência admitida, as dimensões propriamente ditas linguageiras relativas ao que se entende por ato, e que permite reunir satisfatoriamente tudo o que este termo pode apresentar de ambigüidade e que vai de uma extremidade à outra da gama que evoquei inicialmente, incluindo aí não apenas, além do que chamei na ocasião de ato notariado, fiz menção a este termo: o ato de nascimento da psicanálise. Por que não? Foi assim que ele surgiu em determinada volta de meu discurso, mas certamente se aí nos detivermos um pouco, veremos abrir-se facilmente a dimensão do ato relativa ao próprio estatuto da psicanálise. Pois afinal, se falei de inscrição, o que isso implica? Não nos aferremos demais a esta metáfora, entretanto aquele cuja existência está consignada em uma ata quando ele vem ao mundo, ele está lá antes do ato. A psicanálise não é um bebê. Quando se fala do ato de nascimento da psicanálise, o que faz sentido já que ela apareceu um dia, justamente, a questão que se evoca é: será que esse campo que ela organiza, sobre o qual ela reina, governando-o mais ou menos, será que esse campo existia antes? E’ uma questão digna de ser evocada quando se trata de um tal ato. E’ uma questão essencial a levantar, nessa virada, naturalmente, há todas as chances de que, esse campo existindo antes, certamente não iremos contestar que o inconsciente fizesse sentir seus efeitos antes do ato de nascimento da psicanálise. Mas de qualquer forma, se prestarmos bem atenção, poderemos ver que a questão: – quem o sabia? – talvez não seja aí sem alcance.
Com efeito, esta questão não tem outro alcance que a epoché, a suspensão idealista, aquela que se funda sobre a idéia, tomada como radical, da representação como fundando todo conhecimento e que, desde então, pergunta, fora desta representação, onde está a realidade.
E’ absolutamente certo que a questão que levanto sob a forma do: quem o sabia?, esse campo da psicanálise não tem absolutamente nada em comum com a antinomia falaciosa na qual se funda o idealismo. E’ claro que não se trata de contestar que a realidade seja anterior ao conhecimento. A realidade, sim! Mas, e o saber? O saber não é o conhecimento e para levar os espíritos menos preparados a vislumbrar esta diferença, tenho apenas que fazer alusão ao saber-viver ou ao saber-fazer. Aí, a questão do que há antes toma todo o seu sentido. O saber-viver ou saber-fazer pode nascer num dado momento e depois, se é que a ênfase que ponho desde sempre sobre a linguagem terminou por ganhar para alguns de vocês todo o seu alcance, é claro que aqui a questão toma todo seu peso, a questão de saber precisamente o que era alguma coisa que podemos chamar manipulação da letra, segundo uma formalização dita lógica, por exemplo, antes que o fizéssemos. O campo da álgebra, antes da invenção da álgebra é uma questão que tem todo o seu alcance, antes que se saiba manipular algo que é necessário chamar por seu nome, os algarismos, e não simplesmente os números, digo algarismos, sem poder aqui me estender, apelo a alguns, que suponho existir entre vocês, que leram suficientemente, em alguma beira de revista ou em livretos de vulgarização, como procede o Sr. Cantor para demonstrar que a dimensão do transfinito nos números não é absolutamente redutível à da infinidade da seqüência dos números inteiros, ou seja, que sempre se pode fabricar um novo número que não terá sido incluído a princípio nessa seqüência de números inteiros, por mais espantoso que isso pareça a vocês, e isso, a partir apenas de uma certa maneira de operar com a seqüência dos algarismos segundo um método que se chama de diagonal. Em resumo, a abertura desta ordem seguramente controlável e que simplesmente tem direito, pela mesma razão que qualquer outro termo, à qualificação de verídica, será que esta ordem estava lá, esperando a operação do Sr. Cantor por toda a eternidade? Eis uma questão que tem seu valor e que não tem nada em comum com aquela da anterioridade da realidade em relação a sua representação. Questão que tem todo seu peso. E’ uma combinatória e o que dela se desdobra de uma dimensão de verdade, eis o que deixa surgir, da maneira mais autêntica, em que consiste essa verdade que ela determina, antes que o saber nasça.
E’ exatamente porque um elemento dessa combinatória pode vir a desempenhar o papel de representante da representação, e isto justifica minha insistência em que seja assim traduzido o termo alemão em Freud Vorstellungsrepräsentanz, que não é por uma simples susceptibilidade pessoal que cada vez que vejo ressurgir em uma ou outra nota à margem, a tradução de representante-representativo, eu aí denuncio, eu aí designo, de forma inteiramente válida, uma intenção, essa intenção precisamente confusional, da qual é preciso saber porque fulano ou sicrano dela se fazem representantes em certo lugar do campo analítico. Neste registro, as querelas de forma não são vãs, uma vez que, justamente, elas instauram, com elas, todo um pressuposto subjetivo que, sem dúvida, está em questão. Teremos, em seguida, que trazer alguns destaques que nos permitirão orientar-nos sobre este ponto. Esse não é meu objeto hoje, que, como já disse, é apenas o de introduzir a função que tenho que desenvolver para vocês. Mas, desde já, indico que ao marcar simplesmente com três pontos de referência aquele que tem a função de um termo como aquele de conjunto, na teoria matemática, mostrar a distância, a distinção daquele em uso há bem mais tempo, de classe, e aí enganchar, numa relação de articulação que mostre que o que vou dizer aí se insere por uma certa diferença articulada e que o implica na mesma ordem, essa ordem das posições subjetivas do ser que era o verdadeiro tema, o título secreto do segundo ano do ensino que fiz aqui, sob o nome de Problemas Cruciais, que referida à distinção de conjunto e de classe, a função do objeto enquanto a toma todo o seu valor de oposição subjetiva. É o que teremos que fazer no tempo devido, agora, apenas o assinalo à maneira de um marco, cuja indicação e, ao mesmo tempo, a essência, vocês reencontrarão no momento em que tivermos que retomá-lo. Para hoje, tendo então marcado do que se trata, vou retomar a referência fisiologizante para mostrar a vocês algo que, talvez, venha esclarecer, com a máxima eficácia, o que entendo pelo termo ato psicanalítico. E já que fizemos tão facilmente a crítica da assimilação do termo ação com o termo motricidade, talvez seja ainda mais fácil darmo-nos conta do que se trata neste modelo falacioso, pois se o apoiamos em algo que é da prática cotidiana, como, por exemplo, o desencadeamento de um reflexo patelar, creio que a partir de agora será mais fácil percebermos que ele constitui um funcionamento do qual não se sabe porque se chama de automático, já que a automatização, sem dúvida alguma, comporta em sua essência uma referência ao acaso, ao passo que aquilo que está implicado na dimensão do reflexo é precisamente o contrário. Mas deixemos isso de lado.
Não é evidente que não poderíamos conceber de modo racional o que é o arco reflexo, senão como algo no qual o elemento motor não é outro senão o que temos de situar no pequeno instrumento, o martelo com o qual o desencadeamos, e onde o que é recolhido nada mais é do que um signo, um signo, no caso, do que podemos chamar a integridade de um certo nível do aparelho medular e, por essa razão, um signo do qual é preciso dizer que o que ele tem de mais indicativo é precisamente quando ele está ausente, ou seja, quando ele denuncia a não integridade deste aparelho. Com efeito, em relação a esta integridade, ele não nos diz muita coisa; pelo contrário, seu valor de signo, de defeito, de lesão, o que tem valor positivo, sim, ali ele toma todo o seu valor.
Fazer desse algo que não tem entidade e significação senão como alguma coisa de isolada no funcionamento do organismo, isolada em função de uma certa interrogação que podemos chamar de interrogação clínica, quem sabe? Podemos ir mais longe: até mesmo desejo do clínico, eis algo que não dá, a este conjunto que chamamos arco reflexo, nenhuma qualificação especial para servir de modelo conceitual ao que quer que seja considerado como fundamental, elementar, redução original de uma resposta do organismo vivo.
Mas vamos adiante, vamos a algo que é infinitamente mais sutil que este modelo elementar, a saber: a concepção do reflexo ao nível do que vocês me permitirão chamar, já que é por ela que vou me interessar, de ideologia pavloviana.
Isto quer dizer que eu pretendo aqui interrogá-la, certamente que não do ponto de vista de uma crítica absoluta, mas quanto, vocês verão, ao que ela nos fornece de sugestão em relação ao que é a posição analítica. Não pretendo, certamente, depreciar o conjunto dos trabalhos que estão inscritos nesta ideologia. Não digo, além disso, nada de muito novo, dizendo que ele procede de um projeto de elaboração materialista, ele o confessa, de algo que é uma função da qual se trata precisamente de reduzir a referência que poderia ser feita – como se se tratasse ali ainda de um terreno onde fosse necessário combater – a alguma entidade da ordem do espírito.
Nesse sentido, o escopo da ideologia pavloviana é bem melhor disposto que essa primeira ordem de referência que indiquei com o arco reflexo e que poderíamos chamar de referência organo-dinâmica. Esse escopo está muito mais acomodado, de fato, porque ele se ordena da tomada do signo sobre uma função, esta ordenada ao redor de uma necessidade. Não é necessário, penso, vocês todos fizeram estudos secundários suficientes para saber que o modelo corrente pelo qual ela é introduzida nos manuais, e dos quais nós também nos servimos agora para apoiar o que queremos dizer, que a associação de fato de um ruído de trompete, por exemplo, com a apresentação de um pedaço de carne a um animal, carnívoro, claro, é considerada capaz de obter, após certo número de repetições, o desencadeamento de uma secreção gástrica, desde que o animal em questão tenha de fato um estômago, e isso mesmo, após o desfecho, liberação da associação, que se faz, claro, no sentido da manutenção somente do ruído de trompete, o efeito sendo manifestado facilmente pela instalação permanente de uma fístula estomacal. Quero dizer que aí se recolhe o suco que é emitido ao fim de um certo número de repetições à simples emissão do ruído de trompete.
Este empreendimento pavloviano, eu ousaria qualificá-lo, com relação à sua perspectiva, de extraordinariamente correto. Pois, com efeito, o que se trata de fundar, quando se trata de dar conta da possibilidade das formas elevadas de semelhante funcionamento do espírito, é evidentemente esta influência sobre a organização viva de algo que só toma, aqui, valor ilustrativo por não ser a estimulação adequada à necessidade implicada no negócio; e até, propriamente falando, por não se conotar no campo da percepção, senão por estar verdadeiramente destacada de todo o objeto de fruição eventual, fruição, isso quer dizer gozo. Não quis dizer gozo, pois como já dei um destaque específico à palavra gozo, não quero introduzi-la aqui com todo seu contexto; fruto é o contrário de útil. Não é nem mesmo de um objeto de uso que se trata, é do objeto do apetite fundado sobre as necessidades elementares do vivente ; é na medida em que o ruído de trompete não tem nada em comum com algo que possa interessar a um cachorro, por exemplo, pelo menos no campo em que seu apetite é despertado pela visão do pedaço de carne, que Pavlov pode introduzi-lo legitimamente no campo da experiência.
Apenas, se afirmo que essa maneira de operar é extraordinariamente correta, é precisamente na medida em que nela Pavlov se revela, se posso dizer assim, estruturalista de saída. No início de sua experiência, ele é estruturalista avant la lettre, do estruturalismo da mais estrita observância, a saber, da observância lacaniana, uma vez que precisamente o que ele aí demonstra, o que ele de alguma forma pressupõe como implicado é, precisamente, isso que faz com que o significante, ou seja, que o significante seja o que representa um sujeito para um outro significante.
Aí está de fato, como ilustrar o que acabo de afirmar: o ruído do trompete não representa aqui nada mais que o sujeito da ciência, a saber, o próprio Pavlov. Ele o representa para quem? Por quê? Evidentemente para nada mais que isto, que não é um signo, mas um significante, a saber, signo da secreção gástrica, que só toma seu valor precisamente pelo fato de que ele não é produzido pelo objeto do qual se esperaria que o produzisse, que ele é um efeito de engano, que a necessidade em questão é adulterada e que a dimensão na qual se instala o que se produz ao nível da fístula estomacal é o de que se trata, a saber, nesta ocasião o organismo é enganado.
Há pois, com efeito, demonstração de algo que, se vocês examinarem melhor, não é, claro, senão com um cão; vocês podem fazê-lo com uma espécie de animal completamente diferente. Toda a experimentação pavloviana não teria verdadeiramente nenhum interesse se não se tratasse de edificar a possibilidade essencial da apreensão de algo que é sem dúvida alguma, e não para se definir de outro modo senão como o efeito de significante, sobre um campo que é o campo vivo, o que não tem outra repercussão, digo, repercussão teórica, senão permitir conceber como, ali onde está a linguagem, não há necessidade alguma de procurar uma referência em uma entidade espiritual. Mas quem sonha com isso atualmente? E a quem isso pode interessar? É necessário, de qualquer forma, enfatizar que o que é demonstrado pela experiência pavloviana, ou seja, que não há operação implicando como tal os significantes que não implique a presença do sujeito, não é absolutamente o que, em primeiro lugar, certas pessoas fúteis poderiam pensar.
Esta prova não é absolutamente o cão que a dá, e nem mesmo para o Sr. Pavlov, pois o Sr. Pavlov constrói esta experiência precisamente para mostrar que é perfeitamente possível dispensar uma hipótese sobre o que pensa o cão. O sujeito cuja existência é demonstrada, ou antes a demonstração de sua existência, não é absolutamente o cão que a fornece, mas, como ninguém duvida, o próprio Sr. Pavlov, porque é ele que sopra o trompete; ele ou um de seus ajudantes, pouco importa. Fiz incidentalmente um comentário, dizendo que o que está claramente implicado nesta experiência, o que está implicado, é a possibilidade de algo que demonstra a função do significante e sua relação com o sujeito, e acrescentei que certamente ninguém esperava obter com isto algo da ordem de uma mudança na natureza do animal. Assim, o que quero dizer com isso é algo que tem seu interesse, é que não se consegue sequer uma modificação da ordem daquelas que precisamos supor ter ocorrido na época em que se fez passar esse animal chamado cão ao estado doméstico.
É preciso admitir que o cão não é doméstico desde o paraíso terrestre. Logo, houve um momento em que se soube fazer desta besta, não um animal dotado de linguagem, claro, mas um animal do qual me parece que talvez fosse interessante sondar se essa questão, essa que se formula assim: a saber, se podemos afirmar que o cão sabe de alguma forma que nós falamos, como parece, que sentido dar aí à palavra saber? Essa questão parece ser pelo menos tão interessante quanto aquela levantada pelo dispositivo do reflexo condicional, ou condicionado.
O que mais me surpreende é o modo pelo qual, no curso dessas experiências, nunca recebemos dos experimentadores o menor testemunho sobre o que é, e o que, entretanto, deve existir, das relações pessoais, se posso dizer assim, entre o animal e o experimentador. Não quero bater na mesma tecla da Sociedade Protetora dos Animais, mas confessem que seria, não obstante, bem interessante e que lá talvez aprendêssemos um pouco mais sobre o que se pode chamar neurose ao nível dos animais, do que o que se registra na prática; pois aí se visa, na prática, essas estimulações experimentais, quando levadas até o ponto de produzir essas espécies de desordens diversas que vão da inibição ao latido desordenado, e que se qualifica de neurose sob o único pretexto de algo que, primeiramente, é provocado; em segundo lugar, tornado completamente inadequado com relação às condições exteriores – como se há muito o animal não estivesse fora de todas essas condições – e que não tem, é claro, por razão nenhuma, o direito de ser assimilado ao que, justamente, a análise pode permitir qualificar como constituindo a neurose em um ser que fala.
Em suma, nós o vemos, não apenas aqui o Sr. Pavlov demonstra na instauração fundamental de sua experiência, como disse, ser estruturalista e da melhor observância; mas pode-se dizer que mesmo o que ele recebe como resposta tem de fato todas as características do que definimos como fundamental na relação do ser falante à linguagem, a saber, ele recebe sua própria mensagem sob uma forma invertida. Minha fórmula emitida há tanto tempo aplica-se aqui muito oportunamente, pois o que é que acontece? O que ele engatou, colocou em segundo: o ruído do trompete, se podemos dizer, inicialmente para ilustrar relativamente à seqüência fisiológica montada por ele, ao nível do órgão, uma fístula estomacal, o que é que ele obtém agora? O que ele obtém é uma seqüência inversa na qual, engatada a este ruído de trompete, se apresenta a reação do animal. Não há para nós muito mistério em tudo isso, o que, por outro lado, não reduz em nada o alcance dos benefícios que puderam, ao nível de um ou outro ponto de funcionamento cerebral, produzir neste tipo de experimentação, mas o que nos interessa é seu objetivo. Que seu objetivo não seja obtido senão ao preço de um certo desconhecimento do que constitui a princípio a estrutura da experiência, eis o que deve nos alertar quanto ao que esta experiência significa enquanto ato, pois esse sujeito, aqui Pavlov, que nesta ocasião só faz, muito exatamente e sem se dar conta disso, recolher sob a forma mais correta o benefício de uma construção que é estritamente assimilável à que se impõe a nós, desde que se trata da relação do ser falante com a linguagem. Eis o que, em todo o caso, merece ser posto em evidência, ainda que seja apenas para ser desfalcado da ponta demonstrativa, por assim dizer, de toda a operação.
A propósito de todo um campo de atividades ditas científicas em um certo período histórico, essa perspectiva de redução dita « materialista » bem merece ser apreendida como tal, pelo que ela é, a saber, sintomática. Seria necessário que isso acreditasse em Deus, exclamaria eu! Mas, de fato, é bem verdade que toda esta construção dita materialista ou organicista, digamos ainda, em medicina, é bastante bem recebida pelas autoridades espirituais.
Afinal de contas, tudo isso nos leva ao ecumenismo. Há uma certa maneira de operar a redução do campo divino que, em extremo, em última instância, é completamente favorável a que a peixalhada seja, enfim, apanhada na mesma grande rede. Isso que é mesmo manifestamente mais sensível, expõe-se – por assim dizer – diante de nós, isso, fato sensível que se expõe evidentemente ante seus olhos, deveria, apesar disso, inspirar-nos um certo recuo quanto ao que são – se posso dizer – as relações com a verdade, em um certo contexto.
Se as elucubrações dos lógicos, num tempo já prescrito, considerado como relegado na ordem dos valores do pensamento, que se chama a Idade Média, se por simples elucubrações dos lógicos podiam acarretar condenações maiores, e se sobre tal ou tal ponto que são de doutrina no campo no qual operamos, e que se chamava de as heresias, as pessoas chegavam rapidamente a se estranhar e a se entre-massacrar, por que pensar que estes sejam efeitos, como se diz, efeitos do fanatismo? Por que a invocação de um tal registro, já que talvez fosse suficiente concluir disso que tais ou tais enunciados sobre as relações de saber poderiam comunicar, ser nessa época infinitamente mais sensíveis, no sujeito, aos efeitos de verdade.
Não guardamos mais de todos esses debates chamados, com razão ou não, de teológicos – teremos de voltar mais tarde sobre o que é a teologia – senão os textos, que sabemos ler mais ou menos e que, em muitos casos, não merecem de forma alguma o título de empoeirados; o que talvez não suspeitemos, é que isto talvez tivesse conseqüências imediatas, diretas, sobre o mercado, na porta da escola ou na necessidade na vida do casal, nas relações sexuais. Por que a coisa não seria concebível? Seria suficiente introduzir uma outra dimensão que não a do fanatismo, a da seriedade, por exemplo.
Como é que acontece que, para o que se enuncia no quadro de nossas funções de ensino, e do que se chama de Universidade, como é que acontece que, no conjunto, as coisas sejam tais que não seja absolutamente escandaloso formular que tudo o que nos é distribuído pela Universitas litteratum, a Faculdade de Letras, que ainda mantém o comando sobre o que se chama com nobreza de Ciências Humanas, seja um saber dosado de forma tal que ele de fato não tenha, em caso algum, nenhuma espécie de conseqüência [?] E’ verdade que há o outro lado, a universitas não preserva mais tão bem seu lugar, pois há algo de diverso que se introduz aí e que se chama de Faculdade de Ciências.
Farei vocês notarem que do lado da Faculdade de Ciências, em razão do modo de inscrição do desenvolvimento da ciência como tal, as coisas talvez não estejam tão distantes, porque lá verificou-se que a condição do progresso da ciência é que não se queira saber nada sobre as conseqüências que este saber da ciência comporta no nível da verdade. Essas conseqüências, deixa-se que se desenvolvam sozinhas.
Durante um considerável tempo do campo histórico, pessoas que sem dúvida mereciam, desde então, o título de sábios, pensavam duas vezes antes de colocar em circulação certos aparatos, certos modos do saber, que já tinham vislumbrado perfeitamente. Há um certo Sr. Gauss, por exemplo, bastante conhecido, que tinha visões bastante antecipatórias acerca disso. Ele deixou outros matemáticos colocá-las em circulação uns trinta anos depois, embora já estivessem em seus papeizinhos. Talvez achasse que as conseqüências ao nível da verdade merecessem ser tomadas em consideração.
Tudo isso para dizer a vocês que a complacência, enfim, a consideração da qual goza a teoria pavloviana, ao nível da Faculdade de Ciências, onde ela tem o maior prestígio, liga-se talvez a isso que estou enfatizando, e que é, propriamente falando, sua dimensão fútil. Fútil, vocês talvez não saibam o que isto quer dizer, aliás, eu também não. Eu não sabia até um certo momento, até o momento em que me aconteceu, por acaso, esbarrar no emprego da palavra futilis em um trecho de Ovídio, onde isto quer dizer, falando propriamente: um vaso que deixa fugir[3].
A fuga, espero ter precisado suficientemente, encontra-se na base do edifício pavloviano, ou seja, o que se trata de demonstrar não precisa ser demonstrado, uma vez que é afirmado já na partida, que, simplesmente, o Sr. Pavlov aí se demonstra estruturalista, com a ressalva de que ele mesmo não sabe disso, mas isso evidentemente compromete todo o alcance do que poderia pretender ser qualquer demonstração e, por outro lado, tudo o que se quer demonstrar na verdade só tem um interesse muito reduzido, dado que a questão de saber o que concerne a Deus se esconde inteiramente em outro lugar. Em suma, tudo o que guarda fundamentos para a crença de esperança de conhecimento, de ideologia de progresso, no funcionamento pavloviano, se analisarem detidamente, só reside nisto: que as possibilidades que a experimentação pavloviana demonstra são consideradas como já estando lá, no cérebro.
Que se obtenha da manipulação do cão nesse contexto da articulação significante, efeitos, resultados que sugerem a possibilidade de uma maior complicação dessas reações, não tem nada de surpreendente nisso, já que fomos nós que introduzimos esta complicação. Mas o que está implicado é precisamente o que eu colocava em evidência há pouco, ou seja, se as coisas que revelamos já estavam anteriormente lá.
Aquilo de que se trata quanto à dimensão divina e geralmente àquela do espírito, gira inteiramente em tomo disto: o que é que nós supomos já estar ali antes que façamos a descoberta? Se sobre todo um campo verifica-se que seria não fútil, mas leviano pensar que este saber já estava lá, esperando-nos antes que nós o fizéssemos surgir, isso poderia ser de molde a nos levar a fazer uma reavaliação a tal ponto mais profunda.
E’ exatamente disto que vai se tratar, a propósito do ato psicanalítico.
A hora me força a colocar aqui um ponto final no propósito que sustento diante de vocês hoje; vocês verão na próxima vez, aproximando o que é próprio do ato psicanalítico, desse modelo ideológico, do qual disse a vocês que sua constituição paradoxal é feita disso, de que alguém possa fundar uma experiência, possa fundar uma experiência sobre pressupostos que ele mesmo ignora profundamente – e o que quer dizer, que ele ignora? – essa não é a única dimensão a colocar em jogo, a da ignorância, que entendo relativa aos próprios pressupostos estruturais da instauração da experiência; há uma outra dimensão muito mais original, e à qual há muito tempo faço alusão, é aquela que da próxima vez eu me permitirei introduzir, por sua vez.
[1] No original doublure, que tem o sentido de estofo, revestimento ou forro que duplica o tecido de uma roupa, assim como o sentido de substituto do ator principal. (N. de T.)
[2] No original acte, que tanto significa ato, ação ou movimento, como ata, escritura, declaração ou certidão.
[3] Lacan utiliza a expressão francesa un vase qui fuit, que comporta a equivocidade entre fugir e deixar escapar o liquído por uma fenda, vazar.