Não era uma gripezinha – a necropolítica em ação
18 avril 2022

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LYRA Amélia
Cartel franco-brésilien de psychanalyse
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Não era uma gripezinha – a necropolítica em ação

Amélia Lyra – 2022[1]

Como todos sabem, no Brasil a pandemia pelo SARS-COV 2 não foi controlada pelo Estado; nós temos 12,4% dos mortos pela pandemia no mundo, enquanto a população brasileira representa 2,7% da população mundial. E isso em um país que tem um sistema de saúde pública importante e profissionais que poderiam fazer face à pandemia evitando tantas mortes.

Podemos dizer que a contaminação da população pelo coronavírus é um projeto do governo brasileiro e que o número de mortos que isso poderia provocar não tem nenhuma importância para o governo mesmo. Ouso dizer ainda que a morte faz parte do projeto do governo que temos hoje no Brasil e esse projeto, ele não é suposto, foi verbalizado durante a campanha presidencial. Nesse momento, em relação a seus adversários, Bolsonaro, candidato a presidente da república, diz, para quem quis ouvir “que era necessário matar cerca de trinta mil”.

Esse discurso, mostra de maneira muito clara o que Agamben[2] afirma sobre um novo limiar da biopolítica: “nas democracias modernas é possível dizer em público o que os bio políticos nazistas não ousavam dizer”.

O biopoder, como o define Foucault, pode ser resumido pelo domínio da vida sobre a qual o poder exerce seu controle. Para Foucault, no final do século XVIII, “se passa do poder de fazer morrer e deixar viver exercido pelo rei, ao poder de fazer viver e deixar morrer. De um lado, a velha potência da morte e da eternidade, simbolizada pelo poder real; de outro, a administração dos corpos, visando transformar e melhorar a vida, graças à ciência”[3]. Mas, o biopoder que em princípio designava as políticas de saúde pública avança sob a influência do neoliberalismo que em nome da governabilidade utiliza tecnologias de subjetivação desenvolvidas pelas autoridades políticas em busca de dominação e controle dos agentes sociais. Retomarei essa afirmação mais adiante.

No momento, coloco a questão com Mbembe: sob quais condições podemos exercer o poder de matar, deixar viver ou expor à morte? Expor alguém, um grupo racial, o povo mesmo, podemos acrescentar. Retornaremos a esse conceito que Achille Mbembe chama não mais de biopolítica, mas de necropolítica, para afirmar que ela está na base da política do atual presidente da república, Jair Bolsonaro. Para reforçar essa tese, podemos lembrar aqui sua política de liberação de armas para toda a população. No ano de 2020 houve um aumento de 90% dos registros de armas de fogo no país em relação a 2019, o que representa 180.000 novas armas em circulação.

Quando a pandemia chegou ao Brasil, observamos com estupefação, Bolsonaro, a cada dia contradizer seu ministro da saúde dizendo que esta doença era apenas uma gripezinha e impedindo todas as medidas sanitárias propostas por seu ministério e por cientistas. Dois anos depois e após mais de 600.000 mortos e o quarto ministro da saúde desde o início da pandemia, o presidente mantém sua posição e exorta a população a se expor ao vírus. Para justificar suas ações ou ausência delas, ele diz que o país não pode parar e que a imunidade coletiva seria necessária. É necessário sublinhar que o governo não utiliza a expressão imunidade coletiva, mas “imunidade de rebanho”. Essa ideia darwiniana que pressupõe a sobrevivência do mais forte não pode deixar de nos fazer associar às ideias nazistas. Aliás, no ano passado outros fatos vêm mais e mais associar o governo Bolsonaro a ideias nazistas.

            O presidente, no momento em que estimula a imunidade coletiva, nega a impossibilidade de escolha entre a vida e a morte sem nenhuma perda como nos indicou Lacan. Para Bolsonaro, não há nenhum paradoxo nessa escolha. Lacan, em seu seminário Os fundamentos da psicanálise, fala, em referência à Hegel, sobre o fator letal do vel alienante no momento em que “se trata de engendrar a primeira alienação, aquela pela qual o homem entra na via da escravidão: a liberdade ou a vida” o fator letal aparece quando “se faz intervir em um desses campos a morte mesma. Por exemplo, diz ele: a liberdade ou a morte”[4]  

            Esse modo de pensar do presidente da república está em consonância com o modo de funcionamento do neoliberalismo – o que Mbembe prefere chamar de necroliberalismo – no qual se pode deixar morrer alguns, o que interessa é a economia, o mercado, que não pode parar. Esses “alguns” são os grupos que Agamben denomina vida nua: são os cidadãos, os homo sacer, reduzidos pelo Estado a uma categoria que pode ser rejeitada ou assassinada sem que isso seja considerado um crime. O que ele chama vida nua é o que outros como H. Arendt e J. Butler chamam vida precária.

            Agamben trabalha em seu livro Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua, com a ambiguidade da palavra latina sacer, sagrado ou maldito, sem deixar de fazer referência ao texto freudiano, O sentido oposto das palavras primitivas.

            Sobre o homo sacer ele dirá que o que descreve sua condição é o caráter particular da dupla exclusão à qual ele é submetido e a violência a qual ele é exposto pelo poder soberano, poder que dá qualificação a essa vida e determina seu valor.

            Ele diz ainda: “A sacralidade da vida que se desejaria hoje se fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.”[5]

            Em seu ensaio sobre a necropolítica, A. Mbembe assinala a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos humanos e de populações pelos Estados. Ele se refere, sobretudo aos refugiados e colonizados, mas podemos dizer que o atual governo brasileiro não tem nenhum pudor em operar essa destruição. Como diz o presidente Bolsonaro: vai-se morrer de todo modo. E esta positivação da morte é o real mesmo que vem atingir cada um de nós e que a pandemia vem reforçar.

            Rosa, uma paciente jovem, me contava, após sua hospitalização em razão do Covid: “no quarto do hospital eu olhava pela janela os carros passando, as pessoas sobre a calçada e pensava: é a vida que continua lá fora e estou aqui sem saber se vou retomar minha vida. Faltava-me o ar por causa da pneumonia, mas, sobretudo por causa do desespero que eu sentia”. Para ela, o que lhe acontecia não era uma gripezinha, mas uma devastação. No hospital, ela se sentia fora do mundo, como dizia Rimbaud em Noite no inferno: o relógio da vida parou nesse instante. Não estou mais no mundo.

            Para esta mulher, duramente atingida pelo Covid, seu próprio corpo se torna um estranho e qualquer sensação física é vivida com bastante angústia, “não sei mais como lidar com ele (seu corpo) e isso me deixa desesperada”, me dizia ela vários meses após sua hospitalização.

Para Pedro, o terror de se contaminar ou de contaminar sua família, transforma sua vida em rituais obsessivos de limpeza de si mesmo e de sua casa a cada vez que retornava das compras. Após dezoito meses de pandemia, foi necessário lhe dizer que seus filhos adolescentes não poderiam continuar impedidos de sair para ir à escola como ele queria continuar a fazê-lo.

Entretanto, as inquietudes ou essas questões colocadas por esses pacientes no consultório, não se fazem presentes entre os pacientes que recebo no serviço público onde trabalho também. Eles me falam da pandemia sem terror e o relato da morte de um próximo, ou mesmo de um familiar vem sempre acompanhado de frases como: “foi Deus que quis assim” ou “é Deus que decide”.

            Num primeiro momento, a forma como esses pacientes me falavam da pandemia, de seus adoecimentos ou de seus mortos, forma que poderia chamar de natural, me surpreende. Eu esperava, após a reabertura do serviço, escutar relatos mais dolorosos por que sabia que essa era a população mais afetada pelo Covid.

            Para esses pacientes, entretanto, a pandemia não tinha a significação que eu esperava, apesar da quantidade de mortos. E a hipótese que podemos levantar aqui é que, fazendo parte desse grupo que Agamben chama a vida nua, para esses pacientes a pandemia pelo SARS-COV 2 não era uma situação muito excepcional. A pandemia vem se somar às outras doenças, como por exemplo, as arboviroses contra a qual eles lutam a cada ano ou outras doenças crônicas. Do mesmo modo, a morte está sempre próxima deles, seja por causa das condições precárias nas comunidades onde residem, seja por causa da violência. Violência resultante do tráfico de drogas ou resultante das ações policiais. Em 2018, o número de jovens mortos em razão da violência policial foi de mais de trinta mil e é necessário ressaltar que 75% dos jovens assassinados eram negros.

Mas, eu dizia antes que o relato desses pacientes vinha sempre acompanhado de uma referência a Deus e de uma naturalização da tragédia. Talvez fosse melhor dizer que esse discurso é um discurso de servidão, servidão diante de Deus, mas também diante do Estado. Há sempre uma resignação diante de suas condições de vida e do que lhes acontece. Podemos dizer que essa servidão corresponde a uma anulação do sujeito, a uma falta de elaboração que poderia constituir uma resistência própria ao processo de destruição, como nos chama atenção R. Chemama em seu livro La psychanalyse refoule-t-elle le politique?[6] , em referência aos sonhos dos indivíduos que sofreram uma situação traumatizante na Alemanha durante a ascensão do nazismo.

Podemos emitir aqui algumas hipóteses concernentes a essa servidão. A primeira é a seita neopentecostal a qual eles são fieis. Esta seita teve grande expansão no Brasil e representa cerca de 65 milhões de adeptos hoje. Angela Jesuino já nos falou dessa expansão e de suas consequências. E esta condição de submissão, com as hipóteses que coloco aqui, são condições favoráveis ao neoliberalismo a quem o governo Bolsonaro serve.

A outra hipótese que podemos formular é a história da escravidão no país, que não está totalmente extinta. Como afirmou o sociólogo Eduardo Mei “a acumulação de capital e o neoliberalismo favorecem o caráter a exacerbação do caráter necropolítico de um país constituído sob o impacto da conquista colonial e da escravidão… O presidente atual se apresenta como um representante da “casa grande’, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os negros, os quilombolas, as populações pobres e com fome”[7].   

Sobre isso, gostaria de ler, se me permitirem, trechos de uma reportagem do jornal Le Monde[8], de setembro de 2021, sobre a pandemia em Manaus, cidade do Norte do país, que foi duramente atingida pela pandemia e que reforça o que acabo de dizer.

O jornalista coloca como título a frase de uma mulher entrevistada por ele: “as pessoas são habituadas à morte, elas não têm medo de nada”. E a reportagem segue:

“Quantos? Nem sei mais. Espere, vou contar”… Um a um, Alzemira Lima Pinheiro apresenta os nomes, os olhos semicerrados, olhando para o teto:” teve minha mãe, minha cunhada, três primos, três tios. Ah! E teve também uma prima e dois amigos do trabalho”. O que poderia ser uma lista de convidados para um casamento ou uma festa de aniversário se trata na realidade de vítimas do Covid-19.

“Ao todo, perdi cerca de quinze pessoas próximas” suspira essa desempregada de 46 anos, rosto envelhecido, moradora do bairro Viver Melhor, em Manaus. Depois de um tempo, ela desaba em lágrimas “me sinto muito só”, soluça Alzemira, buscando desesperadamente as palavras: “como dizer? O Covid é uma doença que veio do outro mundo para nos matar. É uma punição divina, o Apocalipse.”

            O jornalista entrevista também Roberto, padre do Ministério da Potência de Deus, uma das inumeráveis igrejas do bairro, em grande maioria evangélicas. Roberto lhe conta suas perdas e seu trabalho e afirma que a igreja “é o último refúgio para a população”.

Mas, retornando às hipóteses que emiti aqui, porque afirmar que o governo Bolsonaro serve ao neoliberalismo? Ou que sua necropolítica serve à ideologia neoliberal?

            Poderíamos simplesmente responder a essas questões com outro exemplo, uma frase de uma funcionária do ministério da economia a empresários, no início da pandemia: “é bom que as mortes aconteçam entre os idosos… isso permitirá uma melhora de nossa economia, pois reduzirá o déficit financeiro no sistema de previdência social”[9]. No entanto, faz-se necessário avançar sobre o assunto.

            Não podemos mais pensar o neoliberalismo unicamente como um modelo econômico, mas como uma nova razão do mundo, como o afirmam Dardot e Laval[10] ou como uma teologia política para Villacañas[11]. É a partir desses autores que ouso avançar aqui.

            Estes autores trabalham com a ideia de que o neoliberalismo avança em todos os setores da sociedade, assim como sobre a subjetividade dos indivíduos. O neoliberalismo reuniu outra vez, a separação de poderes característica do Ocidente após os governos absolutistas. Para conseguir essa fusão e operar sobre a subjetividade, os instrumentos utilizados, entre outros, são a religião e o marketing intensivo, esse último o mesmo instrumento utilizado pelo fascismo como já nos apontou Adorno.

            Essa fusão entre o poder e o eclesial é bem explorada por Bolsonaro que no momento de sua posse faz votos a Deus e repete sempre que somente ele poderá tirá-lo do poder.

            Mas, no neoliberalismo não temos um Outro transcendente mas um Deus imanente, o mercado, que como nos disse Lacan deve ser absoluto. Essa absolutização é a condição para o surgimento da mais-valia no discurso através do mais-gozar, diz ele. E é o retorno de um outro ao Outro, um Outro imanente, que para Villacañas, vai permitir a formação de uma teologia política. Aqui, a promessa não é de salvação e sim de autonomização dos indivíduos. Esse retorno é o inverso do que Lacan explica em seu seminário Do Outro ao outro, onde ele diz que o Outro tem necessidade de um outro para tornar-se um-a-mais, para que se produza outro significante que virá representar o sujeito.

            Quais são as consequências dessa inversão? Lacan fala sobre isso quando demonstra a estrutura do discurso capitalista. Resumindo: não há falta a gozar, não há disjunção entre saber e verdade. É um discurso sem perda e sem antagonismo entre o capitalista e o trabalhador, pois o trabalhador, em sua autonomização é um investidor, quer dizer, também um capitalista. Esse Novo sujeito, de acordo com Dardot e Laval: “é visto como proprietário do “capital humano”, capital que é necessário acumular por escolhas esclarecidas, amadurecidas por um cálculo responsável de custos e benefícios. ”[12]  

            Para Dufour, o mercado é uma nova forma de Providência, mais potente que as precedentes e seus atributos são os mesmos da divindade: “a onipotência e o fato que ele se apresenta como lugar mesmo da verdade”[13]. Isso quer dizer que o mercado tem uma aleturgia, a saber, uma produção de verdade que lhe dá uma dimensão pastoral, dimensão que é necessária para a governabilidade dos indivíduos.

            Essa forma de organização de governo que tem como ideal a hegemonia, a universalidade do igual, para se manter tem necessidade também da dominação. Mas, como Lacan nos advertiu, a força do capitalismo incide contra o próprio poder. Diz ele:

            “O capitalismo mudou completamente os hábitos do poder. Eles tornaram-se, talvez, mais abusivos, mas enfim, mudaram… A ideia de considerar como um progresso e ainda liberal, as instituições onde, quando alguém sabotou tudo o que ele devia fazer durante três ou seis meses e se revelou incapaz, ele deveria ser demitido e não lhe acontece nada, ao contrário, é dito para esperar que ele retorne mais uma vez.”[14]

            Esta afirmação de Lacan pode responder a questão da manutenção de Bolsonaro no poder, quando a cada dia ele transgride as leis do país ou quando os cientistas demonstraram que mais de cinquenta por cento das mortes por Covid no Brasil poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse seguido as orientações de prevenção dadas pelas autoridades sanitárias e, sobretudo tivesse iniciado mais cedo a vacinação da população.

            Lacan diz ainda, nesse mesmo seminário, que o poder liberal é um poder camuflado, secreto, anárquico, dividido contra ele mesmo e isso por causa de seu aparelhamento pela ciência. Hoje, poderíamos acrescentar o digital e as redes sociais a esse aparelhamento.

            Sabemos com Lacan, que a ciência rejeita a heteronomia e a lei simbólica, o que faz com que o sujeito possa se engajar em um gozo sem limites. A heteronomia, como a tinha pensado Kant, submete o sujeito à vontade de uma coletividade, ao contrário da autonomia, um dos pilares do neoliberalismo, assim como o discurso da moral. Os grupos antivax são hoje um dos exemplos dessa “autonomia”, que eles chamam “um direito à liberdade”.

            Como cada um de nós brasileiros, conseguirá sair dessa dupla tragédia, a pandemia e o governo Bolsonaro? No que concerne à pandemia é necessário fazermos o luto dos mais de 600.000 mortos e esse luto, deve ser pensado além do luto de cada um, além dos ritos funerários que as famílias não puderam realizar. Podemos pensar que é necessário um trabalho coletivo do país. É necessário admitir a tragédia e suas consequências, o número de mortos mesmo o que é negado pelo governo. Como fazer isso? Não conheço a resposta, mas como nos advertiu Lacan, é necessário fazer o luto para que o fantasma não venha nos surpreender quando não se realiza os ritos funerários.

            Cito Lacan: “É porque o significante (o significante faltante) encontra seu lugar e ao mesmo tempo não pode encontrá-lo, porque esse significante não pode se articular no Outro, que vem se multiplicar, como na psicose, em seu lugar, todas as imagens de onde ressaltam os fenômenos do luto… o fantasma, essa imagem que pode surpreender a alma de todos e cada um, se do lado do morto, daquele que acabou de desaparecer, algo não se realiza, o que se chama os ritos”[15]

            Lacan ao contrário de Freud, não pensa o luto como um retorno que pode restabelecer a relação com o objeto perdido através da substituição do objeto durante o trabalho de luto. Para ele, não se trata de reencontrar um objeto, mas que o luto possa abrir a possibilidade de instauração de outra posição subjetiva. Posição que vai permitir ao sujeito de agir. É dessa maneira que ele faz a análise do luto de Hamlet no seminário de 1958.

            A Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, do Senado, que revelou ao país os crimes do governo Bolsonaro a propósito da pandemia, em seu último dia de trabalho escutou o relato dos familiares de mortos ou pessoas atingidas pelo Covid. Durante todo um dia pudemos escutar essas pessoas falando de seus mortos, seus sofrimentos em decorrência da doença. Nós podemos pensar essa cerimônia de homenagem às vítimas da pandemia, cerimônia transmitida para todo o país, como um momento para compreender o que vivemos. Foi um movimento ainda pequeno diante da dimensão da tragédia; é necessário muito mais para que possamos elaborar e concluir esse luto, mas foi um primeiro movimento.

            Na história recente do país, se fez um pacto de silêncio sobre os mortos da ditadura militar que vigorou de 1964 a 1985, e até hoje há famílias que não puderam realizar os ritos funerários desses mortos ou que não sabem o que lhes aconteceu. A Comissão da Verdade, criada em 2011, tinha por função esclarecer as circunstâncias dessas mortes e tentar encontrar os corpos ainda desaparecidos. Foi a primeira vez que o Estado brasileiro admitiu oficialmente os crimes cometidos durante esse período. Trinta anos após a ditadura, por causa do trabalho dessa Comissão, 434 mortos foram identificados e vários agentes públicos igualmente identificados como os autores dos crimes. Mas a lei de anistia promulgada durante a ditadura militar impede que esses agentes sejam punidos.

            Essa Comissão foi inspirada na comissão Verdade e Reconciliação da África do Sul criada no governo Mandela. Cito as palavras de Desmond Tutu, presidente da Comissão:

“A linguagem, discurso e retórica, faz coisas: constrói categorias sociais, dá ordens, nos persuade, justifica, explica, dá razão, se desculpa. Ela constrói a realidade. Ela mobiliza uns contra outros.”[16]

            Desmond Tutu queria a reconciliação da população de seu país, dividida, profundamente marcada pelo apartheid. Podemos considerar que não é exagerado comparar a situação do apartheid na África ao que vivemos hoje no Brasil. Se o Brasil sempre foi dividido pela desigualdade social, essa divisão se aprofunda com a retórica “bolsonarista” que prega a separação entre aqueles que são os “bons” e os “maus”, que podemos dizer: a separação entre os “puros” e os “impuros”, o que vai além do pensamento religioso, mas nos remete mais uma vez à ideologia nazista.

            Na história do Brasil, houve vários movimentos de reconciliação, como os que citei aqui a propósito do silêncio sobre os crimes da ditadura ou sobre a escravidão e o racismo. Esses movimentos, que sempre foram marcados pela negação da violência e da desigualdade, serviram, sobretudo, ao retorno à mesma situação: a manutenção de uma profunda separação de classes.

            O ex-presidente Lula, durante seu governo, em 2005, fez um movimento de reparação, não de reconciliação, aos negros em virtude da escravidão. Diante da “porta de não retorno”, no porto da ilha de Gorée no Senegal, lugar onde os negros capturados aguardavam os navios que os conduziriam para o Brasil como escravos, o presidente Lula pediu perdão aos africanos pela escravidão de seu povo.

Mas a separação motivada pela retórica bolsonarista impulsionou um modo de funcionamento paranóico, persecutório e por consequência, tentativas de exclusão de membros de grupos, de professores nas escolas, de cientistas nas academias e mesmo de membros das famílias.

            Essa posição paranóica pode-se dizer que foi agravada na pandemia. O vírus é uma ameaça a mais, cada um em torno de mim pode ser um transmissor.

            Se a pandemia deixa, para cada um, traços, não podemos negar que eles são mais fortes ou mais profundos diante do desamparo provocado pela omissão do governo na proteção da população. Podemos nos perguntar se um movimento de reconciliação ainda é possível, em consequência não só da pandemia, mas da exterminação de grupos como os indígenas.

            Como fazer a reconciliação diante das quase trezentas mil crianças que perderam seus pais por causa do Covid? Para os povos indígenas, como conciliar a perda do chefe do clã que sustentava a cultura, o saber da tribo e que era, às vezes, o último que conhecia a língua de seu povo?

Diante da história do Brasil, podemos pensar que é necessário outro movimento, que não seja de reconciliação como um retorno ao mesmo, mas um movimento de reparação que possa conduzir cada um a outra posição subjetiva que nos permita agir. 

 


 

[1] Membro da A.L.P. , e do CEF-Recife. Trabalho apresentado no cartel franco-brasileiro de psicanálise da Association Lacanienne Internationale e Maison de l’Amérique Latine, fevereiro 2022.
[2] Agamben, Giorgio – Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. ED. UFMG, 2002, MG
[4] J. Lacan, Les fondements de la psychanalyse. Sem. 1964, Ed. ALI
[5] Agamben, Giorgio – Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. ED. UFMG, 2002, MG
[6] Chemama Roland, La psychanalyse refoule-t-elle le politique? Éditions érès 2019.
[10] P. Dardot et C. Laval, A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. Ed. Boitempo, 2016 – SP
[11] José Luis Villacañas, Neoliberalismo como teología política – Habermas, Foucault, Dardot, Larval y la historia del capitalismo contemporáneo. Ned ediciones, 2020 – Espagne
[12] P. Dardot et C. Laval, ibid pg. 346
[13] Dufour, Dany-Robert,  Le divin Marché – La révolution culturelle libérale. Ed. Denoël, 2007.
[14] Jacques Lacan , D’un Autre à l’autre, séminaire 1968/69, Ed ALI. pg. 228
[15] Jacques Lacan, Le désir et son interprétation, séminaire 1958/59, Ed. ALI, pg. 359
[16] in: Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-en-ciel. Barbara Cassin, Éd fayard, 2018.