Jogo de posições da mãe e da criança
27 mai 2015

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MEIRA MARTA Ana



Resenha do livro: Jogo de Posições da mãe e da criança – Ensaio sobre o Transitivismo – Autores: Jean Bergès e Gabriel Balbo – CMC Editora, Porto Alegre, 2002

‘(…) a verdade não fala do dizer do analisante e não dá consistência ao ato do analista senão por se sustentar em um desconhecimento.’ Jean Bergès e Gabriel Balbo

Jogo de Posições da mãe e da criança – Ensaio sobre o transitivismo, lançamento da CMC Editora, é um livro que traz uma reflexão instigante sobre este tema que se encontra em cena na subjetivação primordial da criança, mas que revela suas formações em outros campos onde se tece o laço social.

Reportando-se às origens conceituais do transitivismo a partir dos estudos psiquiátricos sobre as psicoses, das contribuições de Wallon e posteriormente de Lacan, Bergès e Balbo analisam as configurações em que o transitivismo se enlaça, para além de uma relação biunívoca. Estes jogos de posições se entrelaçam nos registros do real, do imaginário e do simbólico, apontando para a importância da contribuição de Lacan ao reportar-se ao discurso que os veste e que os constitui.

A criança é marcada por movimentos que a remetem à letra e ao discurso, instâncias simbólicas que o transitivismo aponta em seu horizonte. Neste, a mãe transitivista é aquela que atribui a seu filho a hipótese de um saber e ao mesmo tempo lhe outorga a possibilidade de construí-lo a partir de uma posição marcada pelo desconhecimento. Ao contrário, a mãe que ‘sabe tudo’ não possibilita à criança a constituição de um saber marcado pelo simbólico, mantendo-a presa a uma posição de objeto, impossibilitando-a de ingressar na travessia do transitivismo. Estas são algumas referências que podemos encontrar no trabalho de elaboração efetuado por Bergès e Balbo, a partir de sua rigorosa reflexão teórico-clínica.

Para além do laço primordial entre a mãe e a criança, os autores remetem-se a outros campos nos quais se encontram em jogo as posições transitivistas. A professora, em outro momento da vida da criança, também coloca em cena estes movimentos. A este respeito, os autores escrevem:

‘Se, no revezamento transitivista, a criança recebe o ‘bastão’ [1] de sua mãe e se torna, por sua vez, transitivista, a clínica mostra que outras pessoas vão, também, tomar desse ‘bastão’ e passá-lo adiante: professores e educadores especialmente, que vão, eles próprios, exigir da criança que ela se identifique a seus discursos sábios, porque fazem a hipótese de que o que eles lhe transmitem se articula a um saber que ela já possui. Na clínica, os fracassos das aprendizagens não podem ser corretamente abordados se não se levam em conta os desvios do transitivismo.’ (p. 12)

Lacan refere-se ao transitivismo em vários escritos, entre estes A agressividade em psicanálise, onde escreve que no momento especular a criança apresenta na presença de seu semelhante um comportamento pleno de ‘reações emocionais e testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz ter sido batida, aquele que vê cair, chora. Igualmente, é em uma identificação ao outro que ela vive toda a gama de reações de imponência e ostentação, das quais suas condutas revelam com evidência a ambivalência estrutural: escravo identificado ao déspota, ator ao espectador, seduzido ao sedutor’.’ (p. 29) [2]. Nesta passagem podemos encontrar diversas vias em que o transitivismo opera, mesmo no âmbito social.

Os tópicos analisados por Bergès e Balbo evidenciam um extenso trabalho de aprofundamento no qual, articulados ao transitivismo, encontramos os seguintes temas: os jogos de posições da mãe e da criança, a identificação, o espelho, o novo sujeito, a afânise, o corpo, a voz, o objeto alucinatório do desejo, a neurose obsessiva, a agressividade, o real, simbólico e imaginário, a necessidade de desconhecimento, a condução do tratamento. Neste tecido, o campo do transitivismo, antes circunscrito às relações objetais, adquire novos contornos a partir das contribuições da psicanálise, nas quais a palavra que é ali colocada em jogo passa a marcar um laço simbólico.

Este é um livro para ser lido e relido, fonte de consultas, interlocuções e reflexão. Institui uma direção relativa à posição que cabe aos psicanalistas no campo clínico e para além deste: a de trabalhar desde uma leitura que considere a história e as origens do conceito, virando-o do avesso e produzindo uma reflexão que repercute em transformações na forma de olhar a clínica e outros campos que também se encontram marcados por jogos transitivistas e, portanto, ligados à transmissão simbólica.

O processo analítico apresenta jogos próprios do transitivismo e do desconhecimento que o funda [3]. Em relação a este ponto, os autores reportam-se a Freud, que escreveu em ‘Construção e reconstrução em psicanálise’ a respeito da posição do analista, que reconstrói ‘no só-depois, e a partir da hipótese de uma demanda que ele supõe no paciente, toda a etiologia do sintoma, do mesmo modo que o arqueólogo, de posse de um pouco de restos, reconstrói a cidade que acaba de descobrir.’ (p. 152) As cidades por descobrir, nesta travessia pelas formações do inconsciente, são reconstruções que se encontram em uma direção oposta à via racional e compreensiva.

Sobre as palavras construção e reconstrução, que se encontram em jogo no processo analítico, sua história aponta para os fios que tecem laços a inventar:

  • Construir: amontoar, empilhar por camadas ordenadas.
  • Reconstruir: encontrar uma realidade desaparecida.

Desta forma Bergès e Balbo finalizam seu trabalho, apontando que na análise ‘o analista tem que inventar um real.’ [4]

Jean Bergès é neuropsiquiatra, psicanalista da Association Lacanienne Internationale, ex-chefe de Clínica da Faculdade de Paris. Gabriel Balbo é psicanalista da Association Lacanienne Internationale, responsável pela revista La psychanalyse de l’enfant, diretor de publicação do JFP (Journal Français de Psychiatrie).

1 – As tradutoras referem-se ao bastão como sendo uma metáfora de um elemento simbólico que supõe revezamento e que é parte do processo de transmissão. Aludem ao jogo do bastão, em que os corredores o passam um ao outro, revezando-se, mas mantendo o processo do mesmo. O excelente trabalho de tradução deste livro esteve a cargo de Ângela Vorcaro, Nina Virgínia de Araújo Leite e Viviane Veras.

2 – Em A agressividade em psicanálise, Cadernos Lacan I, APPOA, Porto Alegre, 1996.

3 – Bergès e Balbo escrevem: ‘na falta de transitivismo em seu analista, a criança não acede a essa função essencial de alcançar, ela mesma, a verdade constitutiva de seu sintoma’. (p.135) Afirmam que o engodo fálico da eficiência é o motor da queda do sintoma que acaba por arrastar consigo a própria criança.

4 – Ver o capítulo Observações sobre o transitivismo e a condução do tratamento, p. 153.

Ana Marta Meira