A proposição saussureana da Teoria do Valor permite, ao ser relida com a hipótese psicanalítica de que a linguagem é condição do sujeito, distinguir a operação de incorporação de uma primeira articulação significante. Esse desdobramento da hipótese psicanalítica que distingue a implantação de uma matriz simbólica no organismo (antecedendo, necessária e logicamente, o posterior advento da fala), encontra ressonância na afirmação saussuriana de que qualquer elemento simbólico só se define pelas relações de vizinhança que lhe dão lugar, antes que sejam ocupadas por seres ou coisas. [1]
Nessa perspectiva, considero a distinção da linguagem maternante, fundada no laço que ata um organismo humano ao sujeito cuidador, diferenciada da língua materna, apesar de se estabelecer por meio desta. Em seus efeitos sobre o organismo, a linguagem maternante funda a matriz simbólica, entendida como funcionamento significante mínimo implantado no organismo, fazendo o leito para o posterior funcionamento da língua por meio de uma relação temporal que chamo de embalar andante. Tal temporalidade é organizada, determinada e comemorada por meio da motricidade e da articulação fonemática. Entretanto, o que ressalto aqui, trazendo à consideração de vocês, é a possibilidade de esse registro temporal, com função de escansão na cartografia corporal operada pelo cuidador da criança, ser o eixo estruturante do simbólico.
Partindo de referências de Lévi-Strauss e Saussure, Jacques Lacan afirma que uma organização inscreve linhas de força iniciais antes que o sujeito possa fazer qualquer dedução. As relações primárias se prendem ao que a natureza oferece como suportes dispostos em oposição. Assim, a natureza fornece significantes que estruturam e modelam a organização inaugural das relações humanas. Portanto, antes de qualquer formação de um sujeito que se situa nessas relações por meio de seu pensamento, o jogo operatório do significante age de maneira pré-subjetiva. Assim, por estar incluído nesse jogo operatório, sendo nele contado, o ser pode vir a ser contador [2].
Estas afirmações de Lacan permitem depreender que é com a materialidade oferecida por sua própria natureza que o organismo sofre os efeitos de sua desnaturalização a partir do momento em que a ordem simbólica passa a regular sua economia [3]. Assim, o organismo inicialmente obedece a uma univocidade de signos, pressupostos por sua mãe como partilhados com seu filho, numa linguagem transparente capaz de realizar uma fusão com ele. Tal linguagem feita de signos assegura imaginariamente a comunicação exata com seu filho.
O estado primitivo do neo-nato humano, que é pré-maturo no que diz respeito a sua condição de adaptação vital [4], manifesta sua insuficiência na tensão orgânica que se precipita em descarga. Mas, a despeito de liberar-se pela via motora do grito, nenhuma descarga produzirá resultado de alívio, pois o estímulo endógeno continua [5]. A substituição desse estado de tensão depende do cancelamento do estímulo, que só é possível mediante a intervenção que o elimine, exigindo uma ação específica que forneça a provisão necessária. Incapaz de levar a cabo essa ação específica, o organismo humano depende de que sobrevenha o auxílio daquele que reconhece, na descarga, a advertência do estado de mal estar em que a criança se encontra [6].
O suprimento de necessidades vitais de um organismo implica os efeitos deste ser sobre o agente materno. Sua presentificação real se articula à posição que ocupa na rede de sentidos da mãe. Isso quer dizer que a ação específica faz ato na medida em que implica subjetivamente o seu agente. Assim, as manifestações orgânicas são marcas lidas como mensagem, apagadas pela resposta oferecida e balizadas por precauções que as evitem. As manifestações vitais são signos, marcas que representam um sujeito para alguém, ou seja, a mãe antecipa uma posição de sujeito aderida ao ser. Guiado pela intervenção de uma alteridade que o significa, a pureza do instinto vital morre, posto que fica desfalcado de sua plenitude. Mas, caso o organismo fosse conduzido meramente pelo fluxo de vida, puro ser, sem sentido, ele se excluiria da alteridade, e a condição de insuficiência o mataria.
Portanto, a resposta do agente materno é imposição da alteridade. Ela implica perda e força uma escolha que sobredetermina a inserção do ser no campo da linguagem. Assim, seu fluxo vital manifesto em grito, ganha os atributos diferenciais que um outro lhe confere [7]. Afinal, os cuidados maternais arrastam a interpretação efetuada pelo agente materno, realizando um ato simbólico. Tais sentidos são imperativos por arbitrarem valor, na interpretação. Eles constringem a pureza do fluxo de vida, posto que, ao acolhê-lo, emolduram e decidem sua significação.
O estatuto de presença irredutível de ser real cria a urgência da sustentação imaginária da mãe para contornar esse real ao revesti-lo de significação. A despeito de o organismo manifestar-se, sua posição originária é a de passividade, já que qualquer manifestação implica leitura, sendo portanto, fundamentalmente imaginado pela mãe [8], sustentando assim a operação simbólica que recorta a plenitude do organismo real. A intervenção da mãe implica a estrutura desejante do único sujeito presente, em sua função de agente que suporta a linguagem. O infans é investido pelo agente numa operação metonímica em que a condição desejante da mãe substitui o que lhe falta por seu filho, ou seja, a mãe identifica-se com seu bebê, sobrepondo à falta do pequeno ser o estatuto de desejante que a qualifica como sujeito. Assim, o campo simbólico que precede o neonato recorta sua condição de real, faz dele um semelhante ao torná-lo representável no campo da mãe, antecipando seu tempo de efetuação estrutural [9]. Investindo imaginariamente o infans como o que satura o que lhe falta, a mãe o deseja, pondo o infans em função de signo, objeto do desejo. A mãe enlaça o infans tomando-o na posição de desejante e, ao agir sobre ele, faz de si mesma o instrumento da vivência de satisfação daquele [10].
Melman11 bem observa que o termo Outro-erotismo poderia ser o nome do auto-erotismo, na medida em que, aí, trata-se de gozar do corpo que, entretanto, é território do Outro. O Outro é o corpo infinito representado na origem pela mãe, corpo do qual só se gozam pedaços, corpo que a criança não pode conter ou apreender, mas, ao contrário, a contém. O corpo próprio é, portanto, de início, lugar propício ao gozo do Outro, gozo privado que se oferece à criança como dom.
O grito da necessidade é, assim, transformado em demanda de um sujeito. A esta demanda, o agente responde, trazendo o apaziguamento12. Na fugacidade desse ato de supor um sujeito no grito situa-se o ponto de inseminação no simbólico. Por um lado, a interpretação materna dada ao grito anula a necessidade; por outro lado, o grito, resultante de uma tensão orgânica, é elevado à função de demanda, interpretado como signo de presença de um sujeito desejante. A manutenção do registro passivo da diferença de estados do organismo de descarga tensional e de apaziguamento é funcionamento que regula a manutenção da vida na mais baixa tensão possível, conferindo ao princípio do prazer uma condição de saber orgânico da subsistência13. A criança estabelece, com o seio, uma condição parasitária. Ele é, nesse momento, parte da criança14 e não do corpo da mãe, posto que nada diferencia, para a criança, a alteridade.
A mãe instala e atribui à criança a posição indeterminável de um sujeito do gozo [15], experimentando-se centro do desejo da mãe, ou seja, encarnada em falo daquela [16]. Os objetos da satisfação oferecidos à criança alojam-na em uma posição de alienação plena, onde se inscreve somente o registro de uma diferença entre dois estados que se recobrem. A possibilidade do apaziguamento permitir a cessação do estímulo adverso que provoca tensão permite fazer funcionar a alienação numa alternância de reciprocidades que se opõem ao mesmo tempo em que se anulam, e portanto, se eqüivalem.
Não há descontinuidade nessa circularidade. A relação de mera oposição alternante sobrepõe-se em continuidade recíproca. A diferença posta em jogo de alternância, é renovação onde a possibilidade da ausência é segurança da presença. Por não implicar existência positiva, apenas reenvia à relação entre termos quaisquer, logicamente anteriores às propriedades dos termos presença e ausência que não têm nenhum valor determinado, nenhuma significação, mas que se determinam reciprocamente na relação diferencial em que se reenviam um ao outro. É o que sustenta a condição mínima para a possibilidade simbólica estrutural, ou seja, ao que virá a ser um sistema que não conhece igualdades.
O caráter de alternância da relação presença/ausência que instala a sincronia estrutural da diferença sígnica complexifica-se nos valores sucessivos que o agente do Outro atribui às manifestações do ser ao qual responde. O grito, se é, para o agente, o signo de apelo ao apaziguamento ou à cessação do apaziguamento, mesmo ao se repetir idêntico, sem diferença fônica, avança na direção significante uma vez que muda de valor a cada emissão (apelo à presença ou à ausência). A manutenção da alternância pela mãe (que quando presente torna o grito apelo à ausência da alternância e quando ausente torna o grito apelo à presença da mesma) permite a relação com a presença sobre o fundo de ausência e com a ausência na medida em que esta constitui a presença [17]. O caráter dessa primeira relação constitui, na condição de falante do agente-suporte-da-linguagem, a função simbólica. Afinal, o campo da linguagem, Outro(A), enquanto espaço aberto de significantes, é cadeia de termos que reenviam sempre a outros, necessariamente à espera de outros que completem mais e melhor, sendo, portanto, infinita e interminável, em que um significante retroage sobre o anterior para lhe dar sentido, e onde sempre terá cabido mais um. É o que faz, no funcionamento da linguagem, o efeito de desejo [18].
Enfim, nesse tempo da estruturação subjetiva tem-se a posição zero do problema: a oposição, a instituição do símbolo puro de mais e de menos, presença e ausência, que nada mais é que uma posição objetivável da premissa do jogo19.
Agenciando a experiência de satisfação, a maternagem [20] dá suporte a esse tempo que tem estatuto mítico por só poder ser posicionável retroativamente, após sua falta. É entre o vivo (a que se reduz o sujeito do gozo) e o Outro (a cadeia significante que comanda tudo, tomando, na resposta, a retroação do grito como apelo passível de apaziguamento) que se presentificará uma condição de assujeitamento do ser, na qual aquilo que teria satisfeito a necessidade sustentará sua condição de não-simbolizável, inassimilável, estranho. O funcionamento simbólico acéfalo do organismo faz, assim, o leito estrutural necessário para a entrada em jogo do real. A alienação simbólica é, portanto, o leito em que se situa a cadeia significante que comanda a presentificação do assujeitamento do ser, o lado desse vivo chamado à subjetivação [21] que dispõe do funcionamento sincopado antes de engajar-se na linguagem ou de aí localizar um semelhante [22].
O próprio funcionamento ritmado da alternância acaba por realizar uma defasagem que se inscreve entre os termos diferenciais, fazendo incidir lacuna, alteridade real, na relação rítmica em que um termo anulava o outro alternadamente. O desencontro marca a exclusão de um dos termos alternantes cortado pelo adiamento ou pela precipitação dos termos alternantes. Diante desta hiância, o infans ocupará esta posição vazia pelo grito, que substitui o termo sustentador da alternância, que não compareceu em seu lugar. Assim, a defasagem no funcionamento da alternância estende o grito à posição do termo esperado para sustentação da alternância, substituindo-o. A relação de oposição presença-ausência, sustentadora da alternância que articulava os termos (como autômaton [23]) é rompida. A hiância acidental na sustentação da primeira estrutura simbólica, em que falta o que ainda não está representado, pontua o encontro faltoso, (Tiquê24), fisgando o ser antes que ele possa figurar o que escapa a sua apreensão. Instaura-se a situação de privação25, antes de o sujeito ser subjetividade, primeiro passo e ponto mais central da estrutura da identificação do sujeito26. Na condição de privação, algo falta em seu lugar, « há um nada alí ». A falta, portanto, só é apreensível por intermédio do já estruturado, onde algo inominado falta na posição esperada. O grito se que faz apelo ao retorno da coisa alternante é corpo que se oferece ao que falta na alternância simbólica.
Assim, na dupla de termos alternantes, a incidência de uma falta localizará a impossível sustentação da automaticidade tensão-apaziguamento. A articulação da criança no registro do apelo a situa entre a noção de um agente que participa da ordem simbólica e o primeiro elemento de uma ordem simbólica – o par de termos opostos em cadeia. O apelo assume função antes de ser percebido como tal e antes de se distinguir um eu e um não-eu. Trata-se da atualização, na experiência, da estrutura mínima do significante, que agora incidirá no infans, como real, traçando o recalque originário. A estrutura se diferencia num ponto singular, em que a diferenciação significante estrutural é uma intervenção (adia e precipita) temporal que desnaturaliza o Outro.
A condição de falta demarca um lugar, introduzindo um traço. No momento em que a criança encontra a falta num dos termos da estrutura simbólica constituída por alternância do casal primitivo de articulação significante, a coisa desconecta-se de seu grito, elevando-o à função de demanda no grito-significante-da-coisa. O grito enlaçado pelo pequeno como apelo de urgência diante da falta opera a primeira substituição do infans, onde a falta faz deslizar o grito de apelo com o que preencheria a hiância. Isto que se desprende como grito, que se separa do infans passando por um orifício do corpo, ultrapassa a função fonatória do organismo, é referência invocante, resquício de um objeto indizível, que faz dessa emissão o que não pode se dizer. Assim, o sujeito aparece no que lhe faz alteridade: no que o primeiro significante – o grito – incide como sentido, significante unário que, por só poder se prestar a intimar uma recuperação, não se faz equivaler a ela, apenas traça sua falta.
O objeto de satisfação, portanto, só se esboça no simbólico ao emergir enquanto falta radical. Algo do Real vem ao saber, mantendo uma parte de sua verdade perdida, irrecuperável. O que torna possível a relação ao Outro é um ponto insustentável. Este ponto de onde surge o significante é aquele que não sabe ser significado. É aí o ponto de falta de significante. Nada falta que não seja da ordem simbólica: é uma privação real que se manifesta27. O grito incide como urgência do retorno à anterioridade, busca de apagamento da falta. O que se introduzirá na leitura do grito será, doravante, substituto que só se diferenciará por não atingir jamais identidade plena, será suporte de uma diferença que marcará o arrancamento do sujeito de sua imanência vital reincidindo no ciclo da repetição. Assim, em todas as diferenças qualitativas dos objetos substitutivos se mantém uma unicidade: reinscrevem seu estatuto diferencial para com a satisfação mítica que deu origem à série, balizando o contorno desta falta inassimilável. Neste momento de virada da relação primordial, que claudica pela introdução do real, insere-se a virtualidade da coisa perdida surgida do nada enquanto busca de reencontro.
Portanto, o que o faz surgir sujeito ao campo do Outro é um significante binário, por articulá-lo(S2) com o que o teria satisfeito(S1). É o que irá representá-lo, para qualquer resposta que aí incida, como um significante a mais. O apelo é dissimétrico à falta; a resposta do agente é dissimétrica ao apelo. Um intervalo sustenta a margem do recobrimento que nada reverte ou anula. Na borda em que a resposta se efetua enquanto uma não-correspondência inversamente idêntica ao apelo, o intervalo diferencial mobilizará a repetição, fundando o desejo que se articula na via da demanda desde que uma resposta qualquer incida aí. Como diz Bergès, é do silêncio que o apelo procede, cortando-o; e se ele não é respondido, é ao silêncio que ele retorna; O apelo antecipa a resposta mas ele só é apelo se é respondido. É só da resposta que o apelo toma sentido. Neste retorno a mensagem é invertida, tornando-se linguageira [28].
Na sua encarnação de agente materno que sustenta a alternância presença-ausência, correlacionando-as ao objeto da necessidade, o Outro simbólico se faz terceiro termo entre infans e objeto da necessidade. O agente, que faz mediação significante ao suportar a linguagem, é Outro simbólico, pelo qual o grito do infans torna-se apelo, articulando, no acolhimento interpretado da necessidade, o endereçamento de um apelo que lhe concerne. A intromissão desse terceiro termo, alteridade radical no dispositivo mecânico que manifesta e sacia a necessidade, tornará logicamente possível o deslizamento metonímico.
A emergência da equivocidade [29] rompe esse laço imaginário devido à apreensão, pela criança, dessa exclusão. A opacidade dessa exclusão passa a comandar o funcionamento lingüístico que, doravante, articula essa opacidade real. Assim, recusada como objeto do gozo materno, a criança depreende o Real, ou seja, o impossível do sentido sexual fusional. Exonerada da função de objeto de gozo, ela situa a falta de gozo, sendo marcada, num traumatismo, pelo signo de sua ausência.
A esse respeito, vale notar que Lacan [30] toma o monólogo infantil como jogo sintático que constitui a cama de reserva inconsciente (no sentido de reserva de índios no interior da rede social). O discurso articulado de um sujeito remete-se à resistência primeira de um núcleo Real, dito traumático por Freud, antecedente ao advento do sujeito. O núcleo Real funda-se sobre a identidade perceptiva da falta, que autentifica a realidade permitindo o despertar do sujeito. A condição traumática desse núcleo é efeito de uma defasagem: a satisfação da necessidade não vem a tempo – cedo demais ou tarde demais -, causando excesso ou escassez de prazer [31], marcando a ranhura primitiva que queima o ser atingido pela marca do desejo. Essa queda desapercebida orientada pela falta, faz bater a pulsação que a reconhece a cada repetição, mantendo ignorante essa rachadura, sempre reencontrada nas camadas que tentam suturá-la, que fazem dela uma nadificação ativa. Nessa perspectiva, a capacidade do trauma é a repetição de algo faltoso32, irrepresentável, que, ao fazer resistência à significação, demarca a reserva inconsciente a qual a sintaxe irá se articular.
Desta perspectiva, como aponta Melman [33], o recalcamento primário que incide sobre a criança não se refere ao recalque de um elemento específico rejeitado. O que dá origem ao sujeito é a incidência da barra – suscetível de vir a atingir qualquer elemento literal, levando-o à posição de recalcada.
Sobre a vigência dessa barra o Outro torna-se corpo constituído de elementos materiais: letras em posição Outra. As letras são, portanto, signos da falta de gozo, tomado como tal après-coup, após o golpe da barra que faz supor que teria havido, antes, uma plenitude. Por marcarem o que falhou do gozo, apenas os signos desta falta se oferecem como refúgio escavado no Outro, constituindo um abrigo para o sujeito.
O recalcamento primário é essa operação de interdição do gozo, que permite especificar a língua materna por seu traço negativo. Portanto, a língua materna é, segundo Melman [34], a língua na qual, para aquele que a articula, a mãe foi interditada, ou seja, a língua na qual funcionou o interdito da mãe daquele que fala. A língua materna, portanto, é inteiramente organizada por esse interdito que imaginariza o impossível próprio a toda língua. O recalcamento do desejo e dos significantes que viriam presentificá-los são conseqüências deste interdito. A partir desse instante, o funcionamento da língua na fala vêm lembrar esse corpo interditado, que permite, nos lapsos, deslizes e tropeços, dizer o desejo inconsciente. O inconsciente se representa como um corpo materno do qual a livre disposição é interditada, mas que deixa escutar o desejo que lhe é inerente, que lhe ficou enganchado. Assim, a língua deve sua significância a esse interdito, e por isso ela permite, nas formações do inconsciente, a manifestação de um desejo. O estoque das unidades significativas inconscientes retorna na fala, dando a escutar a nostalgia do impossível, que escapa e retorna somente a seu próprio modo.
A privação da mãe operada pela língua [35], não faz do inconsciente uma língua oprimida. A incidência do recalque sobre elementos organizam o inconsciente como uma linguagem, ou seja, como uma cadeia feita de elementos cuja unidade significativa varia desde um fragmento do discurso, um segmento de frase até a letra, passando pela palavra, pelo fonema e pelo elemento de pontuação. Tal cadeia é simples escrita, que impede que aquilo que habita o inconsciente possa tomar a palavra. Se o interdito articula o desejo inerente a essa cadeia, veiculado por essa cadeia e constitutivo dessa cadeia, o sujeito não pode apreendê-lo ou articulá-lo. Entretanto, o sujeito pode emprestar-lhe a sua voz sem que o saiba e sem que possa comandá-lo.
A despeito do esforço que as formações do inconsciente deixam entrever, o desejo de um sujeito é sempre desejo de outra coisa, mantendo a propriedade original da língua de ser sempre Outra, indomável.
Enfim, Melman lembra que nada assegura a identificação do desejo na língua, que assim mantém o sujeito sempre no exílio. Mas, ao mesmo tempo, o próprio autor reconhece que, na língua articulada por um sujeito, algo assegura um traço identificatório. Isto porque, além da sustentação da significância na qual a fala funciona, uma outra escala tem lugar: o canto da fala. Trata-se da música da língua materna, imprimida naquele que fala, que é apreensível especialmente quando o sujeito, diante de uma língua estrangeira, conserva a entonação de sua língua materna, recusando-se a abandonar seu canto, ou seja, mantendo a entonação que vem lembrar a mudez do desejo ao qual se está condenado.
Diferentemente de Melman, considero aqui a hipótese de que a entonação marcada na fala do sujeito ao falar uma língua estrangeira torna distinguíveis resíduos de inscrição da língua maternante, saldo de escansões36 do andamento audíveis pela sonoridade da língua materna do sujeito ao articular a língua estrangeira. Talvez, seja o que os sintomas de disfluência, tiques de pontuação, o holofraseamento presente nos autismos, psicoses, debilidades e mesmo a estranha fala da criança com síndrome de Asperger comemoram: uma certa modalização da escansão operada pelo Outro no organismo infantil.
Tal como a língua, a música também é feita de elementos discretos e tem uma significância. Apesar dessa significância não estar organizada por um interdito, nem tudo é permitido. O que rege a sucessão que organiza a música é uma certa relação matematicamente estruturada de seus elementos discretos entre si. Assim, a velocidade da musica conta com a indicação gráfica de andamento. A invenção do metrônomo, e antes deste, o uso do pêndulo, socializou o andamento, que passou a ser especificado em termos de unidades métricas por unidades de tempo passíveis de aferição [37].
Também a música inerente à fala, é regida por esta relação matemática fixa, calculada e ordenada, que não chega a ter voz, mas que veicula um apelo, pela entonação [38].
Minha hipótese é a de que resta, num sujeito falante, um resíduo da linguagem maternante, dada pelo que Melman chama entonação, mas que prefiro localizar como andamento, onde o registro do compasso materno se imprime no organismo da criança, no Outro-erotismo que estabelece a temporalidade. A escolha pelo termo andamento, deve-se a que este sempre apresentou a marca do afeto corporal de deslocamento. Antes da invenção do metrônomo ou do uso do pêndulo, a referência do andamento musical era a pulsação cardíaca, o passo, a respiração e a dança, que fazia a temporalidade da peça musical depender da temporalidade daquele corpo que a executava.
Ressalto esta referência ao afeto temporal no corpo que alude o engajamento do infans nos gestos que fazem ato. Pode-se supor que os cuidados maternantes que contém o corpo do bebê articulem, por meio do andamento, a matriz estruturada num cálculo temporal que imprime escansões no organismo, estabelecendo uma regularidade Outra que segmenta seu fluxo vital coagulando-o, definindo esperas, urgências, sobressaltos e síncopes que discretizam e organizam elementos de uma forma singular que engaja um gozo acéfalo e define uma superfície corporal. Desse lugar, antes que advenha um sujeito por efeito de um interdito que o coloca na ordem significante da língua e lhe oferece o abrigo de uma significância, um leito organiza-a, preparando segmentos em seguimentos.
Dessa perspectiva, um gesto vocálico articulado ou qualquer outro movimento organizado engaja um agente que, nesse momento, não coincide com o sujeito, ainda por vir, mas que podemos chamar de bebê, inibindo a função natural por meio da interceptação do seu fluxo orgânico em doses capazes de regular o corpo como superfície de trocas. Conter ou desprender são modalidades de apelo e de resposta oferecida à demanda articulada pela mãe, implicam uma estruturação de funcionamento que ultrapassa a função orgânica. Se, como lembra Lacan [39], tal funcionamento é constatável de modo bastante evidente no chamado estágio anal, podemos observar que ele é posto em jogo pelo bebê desde as primeiras produções sonoras que ocluem, por meio do tensionamento que modula e pontua, a emissão de ar [40].
As observações de Bergès e Balbo [41] corroboram com essa hipótese. Eles apontam que a criança mantém vivas suas inscrições primárias por meio da motricidade e do agir. As inscrições significantes apesar de cifradas, especificam, em um sujeito, como funciona tal função. Do saber da mãe se constitui o suporte da inscrição significante, que encontra seus lugares no corpo através dos cortes, operados pelo efeito dos afastamentos sucessivos nascidos da resposta à demanda e daquilo que a demanda antecipa. O engajamento do corpo na motricidade viria manter e reavivar, na criança, essa inscrição, assim conservada como lembrança vivida e perdida.
O jogo infantil em que a criança é embalada pelo adulto, parece indicar esse funcionamento num só tempo conservado e perdido. Trata-se, do que opera no jogo lingüístico do embalar andante em que se puxa uma fralda sonora. Fralda sonora que permite entreouvir um traço de presença subjetiva: a espera antecipadora da surpresa de uma descontinuidade. Essa defasagem demarca um lapso no qual a criança se engaja em re-experimentá-lo no jogo do andamento definido pela articulação sonora. Podemos constatar, aí, que o fisgamento da pulsão invocante prescinde do sentido – a não ser que o sentido seja tão somente, nesse momento, a seta direcional dada pela repetição automática segmentada por avatares do andamento que a escandem. Nesse solo, a surpresa é vertiginosa ao mesmo tempo em que nessa vertigem um acréscimo de gozo pode ser contado. Se é por isso que a surpresa de uma mudança de andamento é esperada, o gozo é o de ser objeto implantado no funcionamento de alguém ao mesmo tempo em que é quase possível apropriar-se da experiência da escansão. Temos assim a recuperação do gozo por estar alienada à plataforma do andamento imposto, coincidindo com re-vivência do instante que demarca a exclusão em que a criança se separa. É o que permite considerar que esse jogo testemunha a incidência da pulsação inconsciente, nos primórdios de sua constituição como efeito de linguagem.
1 – Segundo Ferdinand de Saussure, A língua é um sistema de valores articulados, em que o valor de um termo resulta da presença simultânea de todos os outros, portanto, as relações diferenciais se determinam reciprocamente. A língua organiza serialmente as unidades diferenciais que se remetem a séries complexas. Assim, na linearidade do sintagma, incidem as séries das relações associativas que as permitem e as restringem. Cf.: Curso de Lingüística Geral
2 – J.Lacan (1964), Seminário XI, op.cit., pp.25-6.
3 – Charles Melman, Questions de clinique psychanalytique, Séminaire de l’année 1985-6, 10 de outubro de 1985, AFI, Paris.
4 – Ao ser desalojado da condição parasitária em que se situava no ventre materno, o organismo humano vive, ao nascer, um abalo radical nos seus fundamentos. Sua condição de prematuração implica que a autonomia lhe seja mortal: é impotente por sua insuficiência já que seu sistema piramidal inacabado impede a coordenação motora e sensorial necessárias à adaptação vital. Nesse drama4, o organismo cede – aspira, constrangido pelo imperativo desta alteridade que o infla na intrusão de ar e que arranha sua garganta no estabelecimento efetivo de seu funcionamento como superfície de permuta osmótica. Em: J. Lacan (1962-3), Seminário X, L’angoisse, inédito.
5 – Cf: S. Freud (1895), Proyeto de psicología, op.cit., p. 362.
6 – Ibid., p. 362.
7 – Cf. J. Lacan: « Position de l’ inconscient », Écrits, Paris, Seuil, 1966, especialmente no que se refere à metáfora do Homelete, pp. 845-8.
8 – J. Lacan (1956-7), Seminário IV, op. cit., p.249.
9 – J. Lacan (1964), Seminário XI, op. cit., p.181.
10 – Essa vivência de satisfação tem as mais decisivas conseqüências para o desenvolvimento das funções no indivíduo Cf.: S. Freud (1895), Proyeto de Psicología,, op. cit., p.363.
11 – Charles Melman, Questions de clinique psychanalytique, Séminaire de l’année 1985-6, 12 e 19 de dezembro de 1985, AFI, Paris.
12 – Cf. Marie-Jean Sauret, em seu livro: De I’infantile à la structure, op. cit.
13 Cf. Lacan(1969-70), Seminário XVII, O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992, p.14.
14 – O feto é parte do conjunto formado, a partir da diferenciação do ovo, pelo saco gestacional incrustado no útero materno. Esse saco contém a placenta que faz interface externa com o endométrio materno e interface interna em continuidade com a folha ectodérmica da bolsa amniótica que envolve o líquido onde o feto flutua. Assim, seus complementos anatômicos constituem, com ele, uma mesma unidade. O desalojamento do feto através do corte do cordão umbilical que o separa, é corte interior à unidade individual, já que se dá entre o que vai tornar-se indivíduo e seus envelopes que são partes dele mesmo, prolongamentos diretos de seu ectoderma e endoderma. Cf. J. Lacan (1962-3), Seminário X, L’angoisse, inédito.
15 – Ibidem, lição de 13/03/63.
16 – J. Lacan (1956-7), Seminário IV, op.cit., p.230.
17 – J. Lacan(1956-7), Seminário IV, A relação de objeto, op.cit., p.186.
18 – Como lembra Contardo Calligaris<> Cf. Hipótese sobre o fantasma, Porto Alegre, Artes Médicas, 1986,p.23.
19 – J. Lacan (1956-7), Seminário IV, op. cit., p.133.
20 – Esta leitura pode ser feita tomado o Seminário Vll ( A Ética da Psicanálise) à luz do Seminário XX ( Mais, ainda ).
21 – J. Lacan (1964), Seminário XI, op. cit., p.194.
22 – Idem, Ibidem.
23 – Autômaton e tiquê são termos que Lacan toma do vocabulário de Aristóteles para diferenciar a insistência do retorno dos signos comandados pelo princípio do prazer (autômaton) do encontro contingente com o real (tiquê) que vige por trás do autômaton, e arrasta o sujeito no fisgamento da repetição. Cf. Seminário XI, op.cit., p.56.
24 – Ibid., pp.45-65.
25 – O uso do termo <<privação>> não tem aqui caráter fugaz. Lacan o articulou conceitualmente em sua relação à frustração e à castração especialmente nos Seminários lV (A relação de Objeto, 1956-7), V ( Formations de l’inconsciente -1957-8 ) e lX ( L’identification 1961-2). Cabe lembrar que a tríade Privação-Frustração-Castração refere-se às modalizações da falta de objeto. A cada um dos termos correspondem, respectivamente, um agente real-imaginário-simbólico, e um objeto simbólico-real-imaginário. Portanto, a privação é a falta real de um objeto simbólico, a frustração é o dano imaginário de um objeto real e a castração é a falta simbólica de um objeto imaginário.
26 – J. Lacan (1961-2), Seminário IX, L’identification, lição de 07/03/62, inédito.
27 – J. Lacan (1962-3), Seminário X, op.cit., lição de 31/01/63.
28 – Jean Bergès, « La Voix Aux Abois », La psychanalyse de l’enfant, no.3-4, Paris, Editions de l’Assossiation Freudienne, 1989.
29 – Cf. Charles Melman, Questions de clinique psychanalytique, Séminaire de l’année 1985-6, 10 de outubro de 1985, AFI, Paris.
30 – Jacques Lacan (1964), O Seminário, livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.70.
31 – idem, Sem.XI, p.71.
32 – Essa falta, transfixada mas elidida, constitui o desconhecimento fundamental do sujeito, que conduz o narcisismo à imagem especular. Desse lugar imaginário de complacência, o sujeito encontra seu apoio, difundindo a satisfação possível na superposição de camadas associativas edificadoras de sentidos.
33 – Charles Melman, Imigrantes, Escuta, São Paulo, 1992.
34 – Charles Melman, Imigrantes, opus cit., p.
35 – Por meio dos significantes supostos representativos do interdito, chamados por Jacques Lacan de Nomes-do-Pai. A função paterna faz cessar a remessa indefinida das significações porque designa – no falo – o objeto final destinado à satisfação. O pacto comandado pelo símbolo é que o sujeito consinta na perda do ser que poderia supostamente satisfaze-lo para só gozar do falo. Cf. Imigrantes, opus cit.
36 – Cabe lembrar que escandir, do latim scandere (subir, de degrau em degrau) significa decompor um verso em seus elementos métricos; destacar bem, na pronúncia, as sílabas de um verso ou de uma palavra. Cf. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa.
37 – Desde o barroco tardio, o andamento é indicado pelo uso de modelos italianos de instrução de andamento, que sugerem também a atmosfera emocional em que a peça deve ser executada. Em: Dicionário Grove de Música, editado por Stanley Sadie, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1994.
38 – Para Melman, a entonação testemunha a presença do pai morto. Morto pelo fato de que não conseguimos chegar a lhe dar voz. A fala seria assim acompanhada por esse apelo veiculado pela entonação. Em: Imigrantes, Escuta, São Paulo, 1992.
39 – Jacques Lacan, Seminário X, A angústia, 1962-3, inédito.
40 – A articulação da voz como objeto pulsional e sua relação com o andamento será objeto de outro trabalho.
41 – Jean Bergès e Gabriel Balbo, A criança e a psicanálise, Artes Médicas, Porto Alegre, 1997, pp. 105-13.