Resenha do livro: Há um infantil da psicose? – seminario 2 – Autores: Jean Bergès e Gabriel Balbo
O mais novo lançamento da CMC Editora nos oferece a possibilidade de conhecermos, através da leitura, os seminários de Jean Bergès e Gabriel Balbo que ocorreram em 1998-99, sobre o tema das psicoses e autismos na infância. A partir de uma pergunta fundamental: Há um infantil da psicose? os psicanalistas percorrem a história conceitual dos termos referentes às psicoses e autismos na infância, resituando posições e concepções estabelecidas sobre o tema.
Uma brilhante leitura acerca das psicoses e autismos na infância é o que Bergès e Balbo nos oferecem através da colocação em cena de entrelaçamentos teórico-clínicos que se colocam a partir de interrogações, mais do que afirmações. Este é um dos grandes méritos do presente livro: revelar o trabalho interrogativo do psicanalista ali onde é convocado a refletir sobre a clínica e seus fundamentos em um espaço onde se opera a transmissão.
A riqueza que daí advém revela-se na reinvenção de conceitos, nas leituras a respeito das forclusões nas psicoses, da posição do analista na clínica, da relação da mãe com seu filho nestes campos, das defesas, do transitivismo, do narcisismo, do estádio do espelho, da posição paterna. Inúmeras questões são analisadas e discutidas, entre estas as que se fundam no diálogo que se estabelece com os presentes aos seminários.
Entre várias passagens, destaca-se o diálogo com Jane Wiltord, realizando proposições que convocam à reflexão acerca da intersecção entre a teoria, a clínica e as diferenças que a cultura marca. A partir de observações realizadas na Martinica, ela refere-se à passagem da menina à puberdade, ali onde acontece a saída de casa, marcada por uma nova posição, enunciada na frase iniciática que a mãe – futura avó – diz à menina: ‘Eu não quero que você traga uma criança para mim’. Fala denegatória que traça simbolicamente uma direção, que lança a menina no mundo a partir de um fio que a sustenta em seus novos caminhos, perfazendo a transmissão de um saber.
Esta passagem encontra-se no capítulo onde os autores refletem acerca da posição da avó materna, ali onde esta pode operar uma via simbólica, de transmissão geracional, de uma linhagem, ou vias forclusivas quando ocupa o lugar do pai simbólico. Bergès, a este respeito, comenta: ‘ … o salto de uma geração incidindo sobre a descendência vem reforçar o desconhecimento, isto é, ao invocar a linhagem, vai no sentido contrário da forclusão. (…) Dessa forma, a filha também teria a competência e o poder de aceder ao saber sobre a criança, saber que incide sobre esse ponto de falta no desejo de sua mãe. A partir dessa hipótese a filha diz: ‘eu sei o que você espera de mim.’ (Bergès, Balbo; p. 80; 2003).
Pensar a respeito das formas com que a interdição e a transmissão operam, diferenciando-se culturalmente, é uma das jóias que este livro nos outorga. Os recortes, o litoral, como Balbo refere evocando Lacan, estas bordas que simbolicamente desenham um lugar subjetivo, fundam-se ali onde uma fala denegatória se enuncia, revelando o desconhecimento, o furo, que coloca à futura mãe a possibilidade de inscrever-se desde um lugar desejante.
As diferentes posições da forclusão evidenciam-se ao longo dos seminários, diferenciando-se nas psicoses e nos autismos. Várias passagens são elucidativas da proposição onde a referência às três gerações que fundam a subjetividade se articulam de forma diversa nos campos das neuroses e das psicoses. ‘(…) para fazer uma psicose são necessárias três gerações; mas três gerações que devem ser contadas da seguinte maneira, contrariamente a tudo o que é admitido. Não se deve contar 1+ 1 +1, mas 1+ (-1) +1: eis as três gerações que fazem a psicose, posto que, 1+ 1 +1 desemboca na neurose.’ (Bergès, Balbo; p. 61, 2003) Uma geração, nesta operação, é abolida: a geração dos pais.
Nos últimos capítulos, Bergès e Balbo realizam uma análise a respeito do corpo e o Outro, referindo que a possibilidade de constituição de uma imagem simbólica se opera quando há imagem entre o discurso sobre o real e a coisa. Nas psicoses, a imagem que marca o sujeito é biunívoca e nos autismos não se constitui. ‘Nas mães de autistas se tem sempre a mesma prova relativa à sua impossibilidade de furar o real pelo simbólico da imagem. É completamente diferente na mãe do psicótico, que não quer que a imagem se interponha entre a coisa e o discurso.’ (Bergès, Balbo; p. 141, 2003) Acompanhando as passagens destas proposições, vemos que o desconhecimento é barrado nas psicoses. O saber em jogo nestes casos é absoluto, sem falhas.
A questão Há um infantil nas psicoses? apresenta múltiplas vias, cujas respostas interrogativas inauguram a possibilidade de revisitar a história dos conceitos, recortá-los, desenhar novos contornos a partir da vivência clínica. São estes alguns dos legados que os seminários de Bergès e Balbo oferecem à psicanálise.
Para realizar a travessia por este livro a partir da interrogação inaugural, cabe nos colocarmos em uma posição de desconhecimento, percorrendo os inúmeros desdobramentos conceituais que os autores propõem sem buscarmos uma resposta unívoca. Desta forma, estaremos ali encontrando algo sem procurar, como bem apontou Lacan a respeito dos avatares da clínica. Fazer a articulação entre a teoria e a clínica psicanalítica avançar, eis o desafio a que Bergès e Balbo nos convocam.
Ana Marta Meira