Considerações sobre as formações do psicanalista
03 novembre 2005

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FLEIG Mario
International

 

Texto escrito para discussão no Cercle d´études et de recherche « formações do psicanalista », da Association lacanienne internationale, em Caxias do Sul, RS, Brasil, em julho de 2004.

Lacan, a respeito da formação do analista, afirmou que « não há formação do psicanalista, há apenas formações do inconsciente ».[1] Este aforismo nos lembra que a relação do analista com o ensino e a transmissão da psicanálise não só não é evidente como também parece ser antagônica, na medida em que está em jogo o ensino de um saber cuja verdade ultrapassa o psicanalista e o divide enquanto sujeito. Deste modo, tanto na posição daquele que ensina como na daquele que é ensinado, é sempre na posição de $ que o analista como analista pode sustentar a função de ensino. Ora, a respeito desta função, ou ele se defende ou ele tende a ignorá-la. Como suspender os efeitos de alienação e de miragem que a função de ensino tendem a produzir no analista? Isso não se resolve pela soma da ignorância de alguns com a de outros, mas pela tentativa de reduzir os desconhecimentos comuns, sem serem idênticos, submetendo os textos fundadores a uma leitura não defensiva ao discurso inconsciente e suas leis (condensação e deslocamento/metonímia e metáfora).
Portanto, é na posição de $ que encontramos o modo apropriado para introduzir as perguntas sobre o que seja o fazer analítico e como alguém pode aprender isso e se autorizar nesta prática. Requer-se que o ser de cada um, ou seja, suas formações inconscientes estejam em jogo. Ora, destas, uma das mais imediatas talvez seja a resistência que a hipótese freudiana do inconsciente produz, a resistência ao significante, que se organiza em um sistema de defesa. A resistência ao inconsciente também faz parte, e em nada acessória, do conceito de formação do psicanalista. O lugar do psicanalista de modo algum se situa fora do inconsciente e de suas formações, e é neste sentido que Lacan insiste em dizer que sempre falou apenas nas formações do inconsciente, e temos que acrescentar, mesmo quando se utilizava do termo « formação do analista », o que não foi poucas vezes.

A formação do psicanalista, portanto, requer ser pensada e interrogada a partir da hipótese freudiana do inconsciente e aquilo que se produz como efeito deste, ou seja, as formações do inconsciente. Sabemos que os primeiros interessados em se habilitar ao ofício de psicanalista, ao se dirigirem a Freud, recebiam deste a indicação de leitura da Interpretação dos sonhos, além de sua análise pessoal. Aí já se descortinava o tripé da formação: análise pessoal, leitura e estudo de textos fundadores e análise de controle (desdobramento da análise pessoal, relativa ao que se passa para o analisante quando se dedica a dirigir um tratamento). O que é então uma análise que tenha efeito de formação do psicanalista? De que modo uma análise pode ser nomeada como didática? Qual o lugar da análise de controle daquele que se inicia como praticante da psicanálise? O que permite orientar psicanaliticamente a leitura e o estudo dos textos fundadores? Estas são perguntas iniciais, e que retornam a cada momento do percurso pelas formações do analista, nas quais a teoria psicanalítica se articula a uma prática que se define, antes de qualquer coisa, como submetida ao discurso.

Considerando que os textos de Freud e de Lacan são textos fundadores, podemos supor neles um endereçamento. É este endereçamento que lhes dá a especificidade de formação, na medida em que o conceito está articulado a uma prática, constituindo a narrativa de um percurso singular. Para quem Freud escreveu seus textos? A quem Lacan endereçava seu Seminário? Parece que é esta perspectiva de leitura que os textos fundadores, desde as correspondências de Freud até os Escritos de Lacan, exigem de nós. Não podemos entrar nestes textos sem estarmos concernidos em seu endereçamento.

Lacan propôs, a partir de 1951, um retorno a Freud, que consistia não em uma simples leitura, nem em uma abordagem nova da obra do mestre, mas antes em um comentário referido constantemente à experiência clínica, definida então como uma experiência de discurso. Experiência de discurso, que hoje pode parecer algo claro, significava abandonar a análise da personalidade, do caráter, do comportamento, da transferência, da dinâmica do inconsciente, das resistências, e de outras coisas, para situar a especificidade da clínica psicanalítica na análise do discurso. Em que consiste a análise do discurso proposta por Lacan, apoiado em Freud? Esta tese pressupõe as explicitações feitas ao longo de seu ensino, a começar pelo desconhecimento que caracteriza a função do eu, que não poderia ser corrigido pela realidade comum. Já em sua tese sobre a psicose paranóica e suas relações com a personalidade, Lacan recursa a concepção do eu como função de realidade para reafirmar a definição que lhe dá Freud como objeto narcísico. Enfim, mas não tudo, Lacan abre o caminho para afastar radicalmente a análise do discurso do campo do conhecimento, através dos achados do estágio do espelho como matriz das identificações imaginárias, constituindo o que denomina de « conhecimento paranóico ». Em contrapartida, na medida em que o discurso deixa ouvir os significanates do desejo recalcado, um outro horizonte se descortina: o lugar onde se constitui a fala do sujeito para lhe retornar como de uma « outra cena », do grande Outro. Isso abre perspectivas consideráveis relativas à concepção de objeto do desejo e de análise. Daí resulta a tese lacaniana lapidar: nossa relação com o objeto não poderia se fundamentar em uma referência ao objeto como objeto de conhecimento. O conhecimento nada quer saber do objeto do desejo. Isso muda muita coisa. Isso determina uma delimitação muito particular da clínica psicanalítica, e precisa ser seguida em seus detalhes nos textos fundadores.

Encontramos, na apresentação da tradução francesa do livro de Schreber escrita por Lacan, uma aproximação relevante entre a formação do psicanalista e as formações do inconsciente:

Foi preciso que a insuficiência do ensino psicanalítico viesse a público para que nos empenhássemos na tarefa de exercê-lo. Os anos de 1956-1966 marcaram a mesma distância. Ainda nos restam dois anos para dar à « questão preliminar » sua seqüência plena. Que quer dizer isso, senão que sempre estivemos interessados na formação de sujeitos capazes de entrar em uma certa experiência que aprendemos a centralizar onde ela existe? Onde ela existe – como constituída pela verdadeira estrutura do sujeito, que, como tal, não é inteira, mas dividida, deixando cair um resíduo irredutível, cuja análise lógica está em andamento. Ora, é fácil introduzir o pensamento a essa estrutura, tão fácil quanto introduzir uma criança de idade relativamente precoce (no desenvolvimento escolar, se não nas fases analíticas) no estudo da matemática, através da teoria dos conjuntos. É no nível da matemática em processo de se fazer que começam as aflições.

Podemos assim dar uma idéia da resistência com que se depara, entre os psicanalistas, a teoria de que depende sua própria formação. Com o detalhe de que, nesse caso, o resíduo irredutível da constituição do sujeito é levado ao máximo de seu emprego ansiogênico pela função psicanalisante. Um tipo de atos falhos – os únicos, talvez, a merecer seu nome, já que, na neurose, eles são atos bem-sucedidos -, um tipo de atos falhos propositados jorra, de maneira muito evidente, no seio da transmissão teórica implicada pela formação do psicanalista. »[2]

A seguir, trazemos outras tomadas de posição de Lacan a respeito de formação do psicanalista que poderão auxiliar na discussão desta questão. Respondendo a uma pergunta sobre a formação do psicanalista colocada pelo entrevistador do jornal Le Figaro, em 29 de dezembro de 1966, Lacan disse:

« A formação de psicanalista se choca com os bons hábitos da preguiça. Na verdade, todas as resistências que encontro junto dos psicanalistas são resistência a Freud. Sem dizê-lo claramente, muitos praticantes pensam : Freud está ultrapasssado, nós, os psicoterapeutas, sabemos muito bem. Ora, em sua essência, a psicanálise não pode ser reduzida à psicoterapia. É por isso que a formação do psicanalista também exige romper com um certo número de idéias que estão profundamente enraizadas: é preciso tirar férias de uma certa idéia que fazemos do sujeito. Ora, isso exige, é preciso reconhecê-lo, uma certa disciplina.

É preciso então retornar a evidências massivas e dizer que a psicanálise, em sua essência, se realiza apenas na transmissão do psicanalista ao psicanalizado com fins de psicanálise, o resto devendo ser considerado como simples ramificações laterais. Os psicoterapeutas de apoio, por exemplo, tão na moda, não têm relação alguma com a psicanálise. Ou a psicanálise se transmitirá, em sua fidelidade inquieta a Freud, ou então ela se reduzira à ação de psicoterapeutas que, no conjunto da terapia psiquiátrica, não terão mais importância do que os mestres-nadadores um pouco superiores. »

Lacan, em sua conferência proferida no Hospital Sainte Anne, em 10 de novembro de 1967, comete um tropeço, que considero significativo, no início da mesma, ao dizer: « E se eu escolhi, pois foi eu que o escolhi, este título: Formação do psicanalista e… Psicanálise … », em vez do título anunciado: « A psicanálise e a formação do psiquiatra ». O que insiste neste tropeço é a « formação do psicanalista », que desliza para a primeira parte do título e produz uma repetição do mesmo, nos termos psicanalista e psicanálise.

Recorto uma parte desta conferência:

« A experiência de análise não é nada mais do que realizar o que é esta função, como tal, do sujeito. Acontece que isso abre para certo efeito que nos mostra que naquilo que está primordialmente interessada nesta função do significante, predomina uma dificuldade – uma falha, um furo, uma falta desta operação significante que está precisamente ligada à confissão -, a articulação do sujeito na medida em que ele é afetado de um sexo. É porque o significante se mostra manifestar falhas eletivas neste momento em que se trata daquele que diz Eu (Je) se diga, como macho ou como fêmea, que acontece que não pode dizer isso sem que isso acarrete o surgimento, ao nível do desejo, de alguma coisa bem estranha, de algo que representa nem mais nem menos a escamoteação simbólica – entendam que não se o encontra mais em seu lugar – a escamoteação de uma coisa completamente singular que é precisamente o orgão da copulação. A saber, que no Real se encontra o melhor para fazer a prova de que há um que é macho e outro que é fêmea, hein?

É isso, é isso o grande achado da psicanálise, é um achado que estritamente não pôde ser feito senão ao ser feito de um modo que lhe dê um sentido, é o caso de dizê-lo, que lhe dê um sentido aceitável, ao nível de outra coisa do que aquilo que Spinoza, visto que falei disso há pouco é preciso que fale novamente agora, chamava de historiolae, de historietas, hein ? é porque papai e mamãe lhe causaram medo que ele acredita nisso, enfim… um monte de coisa que não param de pé. O que se chama de castração é isso, que para que se articule em função de significante – de significante na medida em que é primordialmente ao sujeito – para que venha a se articular alguma coisa que leve o sujeito ao plano sexual, é preciso que ali intervenha isso que, enquanto algo de significante, que este seja como faltante que seja representando o órgão, precisamente da copulação. »

Uma outra referência significativa diz respeito à célebre metáfora utilizada por Lacan do rinoceronte, seja na cristaleira, na porcelana ou apenas rinoceronte:

« Com efeito, no final de contas, nós temos apenas isso como arma contra o sinthoma: o equívoco. Acontece que eu me dou ao luxo de controlar – como se chama isso – um certo número, um certo número de pessoas que se autorizaram elas mesmas, segundo minha fórmula, a serem analistas. Há duas etapas. Há uma etapa em que elas são como o rinoceronte; elas fazem mais ou menos não importa o que, e eu as aprovo sempre. Com efeito, elas sempre têm razão. A segunda etapa consiste em jogar com este equívoco que poderia liberar o sinthoma. Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe.

É preciso dizer que ficamos surpreso, enfim, que os filósofos ingleses, isso de modo algum lhes tenha aparecido. Eu os chamo de filósofos porque não são psicanalistas. Eles acreditam ferreamente que a palavra não tem efeito. Eles estão enganados. Eles imaginam que há pulsões, ainda quando querem não traduzir pulsão por instinto. Eles não imaginam que as pulsões fazem eco no corpo pelo fato que há um dizer. Mas que esse dizer, para que ele ressoe, para que ele consoe, para empregar uma outra palavra do sinthomadaquino [3], para que ele ressoe, é preciso que o corpo seja ali sensível. E que ele o seja é um fato. É porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante, dos quais o mais importante porque ele não pode se arrolhar, se tamponar, dos quais o mais importante é a orelha, porque ela não pode se fechar, que é por causa disso que responde no corpo o que denominei a voz.

O embaraçoso é que não existe apenas a orelha, e que o olhar lhe faz uma concorrência eminente. More geometrico, por causa da forma, cara a Platão, o indivíduo se apresenta como é enjambrado, como um corpo. E esse corpo tem um poder de cativar que é tal que, até um certo ponto, é aos cegos que deveríamos invejar. Como é que um cego, ainda que se utilize do Braile, pode ler Euclides. O espanto é isso que vou enunciar, é que a forma não dá senão o saco ou, se vocês querem, a bolha. Ela é alguma coisa que se infla, e cujos efeitos já disse a respeito do obsessivo que está tomado por ela mais do que qualquer outro. O obsessivo, disse certa vez, e me lembraram há pouco, é alguma coisa da ordem da rã que quer se tornar tão grande como o boi. Sabemos dos efeitos, por uma fábula. É particularmente difícil, sabe-se, arrancar o obsessivo desta captura pelo olhar. » [4]

Em muitos outros lugares encontramos referências diretas à questão da formação do psicanalista, além da própria posição a partir da qual Lacan ministrava o ensino da psicanálise. Cabe ressaltar o que se encontra nos Seminários A transferência em sua disparidade subjetiva, sua pretensa situação, suas excursões técnicas (aula de 24.05.1961), A angústia (aula de 20.02.63), Os conceitos fundamentais da psicanálise (aula de 10.06.64), O objeto da psicanálise (aulas de 11.05.66 e 08.06.66), O avesso da psicanálise (aula de 20.05.70) e O saber do psicanalista (aula de 01.06.72)

Para finalizar, algumas questões a respeito da clínica psicanalítica e a formação do psicanalista.

  1. O fim de análise: qual o destino da transferência?
    Em Freud, podemos examinar esta questão a partir do texto sobre a Gradiva de Jensen. Qual o destino do amor de transferência no final de uma análise? Se Zoé e seu amante podem aspirar o perfeito amor, em contrapartida, no desenlace de uma análise, analista e analisante devem retomar a posição de estranhos um para o outro. Lacan, por sua vez, afirma que o amor de transferência deve se tornar transferência de trabalho. O que pode significar essa transferência de trabalho? Como se dá essa transformação da transferência? O que resta do amor?
  2. Fim de análise não coincide necessariamente com a passagem a analista, ou a passagem a analista não coincide necessariamente com o fim de uma análise.
  3. O que é o passe? Como se situar hoje em relação ao dispositivo proposto por Lacan em 1967?
    Cabe distinguir, inicialmente, entre o passe como a passagem da posição de analisante para a posição de psicanalista e o procedimento do passe instituído por Lacan na École freudienne, para tentar recolher testemunho disso. O primeiro sentido aparece no enunciado de Lacan « se há alguém que passa seu tempo a passar o passe, certamente sou eu ».
    Podemos denominar o primeiro de passe real e o segundo simbólico, conforme proposta de Chemama (cf. seu texto em Letícia P. Fonsêca (org.) O Passe: reflexões, Recife, Centro de Estudo Freudianos do Recife, 2002)
  4. Autorizar-se analista: o que isso quer dizer?
    Retomar os textos nos quais Lacan utiliza esta expressão e tentar uma interpretação dos possíveis sentidos da proposição: « O analista só se autoriza por si mesmo ».7
    Em uma carta a três psicanalistas italianos, em abril de 1974, encontra-se a formulação de base da questão do tornar-se analista e sua autorização:
    « O analista só se autoriza por si mesmo, isso é evidente. Pouco lhe importa uma garantia que sem dúvida minha escola lhe dá com a sigla irônica A.M.E. Não é com isso que ele opera. O grupo italiano não está em condições de fornecer esta garantia. Ao que é preciso prestar atenção é que para se autorizar por si mesmo não haja senão o analista. Com efeito, minha tese, inaugural por romper com a prática pela qual as pretensas sociedades fazem da análise uma agregação, não implica no entanto que não importa quem seja analista. Pois no que ela enuncia, é da análise que se trata. Ela supõe que haja análise. Autorizar-se não é se auto-ri(tuali)zar. Com efeito, afirmei por outro lado que é do não-todo que provém o analista. Não-todo necessário para falar, não poderia se autorizar a fazer um analista. A prova é que a análise ali é necessária, embora não seja suficiente. Unicamente o analista, seja não importa quem, só se autoriza por si mesmo. Existem, agora está feito: mas é disso que eles funcionam. Esta função apenas torna provável a ex-sistência do analista. Probabilidade suficiente para garantir que haja analista: que as chances sejam grandes para cada um, deixa-as absolutamente insuficientes. » [6]
  5. O que Lacan esperava do procedimento do passe?
    No congresso de Deauville, ele perguntou:
    « A única coisa importante é o passante, e o passante, é a questão que eu coloco, a saber, o que é que pode dar na telha de alguém para se autorizar analista? Eu quis ter testemunhos, naturalmente não tinha nenhum testemunho de como isso se produzia. Certamente é um completo fracasso esse passe. Mas é preciso dizer que, para se constituir como analista, é preciso estar bestamente mordido; mordido por Freud principalmente, isto é, acreditar nesta coisa absolutamente louca que se chama o inconsciente e que eu tentei traduzir pelo sujeito suposto saber. » [7]
  6. O fracasso do passe: e então?
    No mesmo congresso de Deauville, reconhecendo o fracasso da proposta do dispositivo do passe, Lacan acaba se interrogando como acontece de alguém pedir a um outro, um analista, para se livrar de seus sintomas.
    Por que viria alguém demandar a um analista para temperar seus sintomas? Todo mundo tem sintomas, considerando que todo mundo é neurótico, e é por isso que se chama o sintoma, neste caso, de neurótico, e quando não é neurótico, as pessoas têm a sabedoria de não vir demandar a um analista de se ocupar do mesmo, o que prova, ainda que não se dê esse passo, a saber, vir demandar ao analista para arrumar isso, que é preciso denominá-lo de psicótico. »
    Vemos que esta é uma questão que Lacan se coloca, sem dar uma resposta: por que alguém, após seu percurso de análise, se arrisca a se tornar psicanalista? O que nos coloca uma pulga atrás da orelha é que Lacan aproxima esta questão, sem nenhuma justificativa, da questão da psicose.
    « Tudo se encontra aí, seria preciso que o analista conhecesse um pouco o limite de seus meios, e é sobre isso, em resumo, que esperamos o testemunho das pessoas que são analista há pouco tempo: o que é que faz surgir a idéia – é aí que eu coloco a questão – de se autorizar a ser analista ».
    Lacan não estaria querendo « salvar » a psicanálise, através de seu procedimento do passe, de grandes perigos? Para refletir: Freud nos dá elementos sobre o fantasma da salvação. Na análise da neurose demoníaca do pintor Christophe Haitzmann, aparece o número « nove », em um típico fantasma de gravidez. O texto de Lacan sobre o passe é de « nove » de outubro de 1967. O passe de Lacan, não se trata de um sintoma? Ora, somente em 1978 é que ele reconhece a impossibilidade da transmissão da psicanálise e então ele fala da necessária reinvenção da mesma por cada psicanalista, como a fênix. Reinventar a psicanálise, em sua prática em relação com a teoria, não simplesmente como apropriação de um doutrina. É nesta relação estreita entre a clínica e a teoria, a partir da enunciação de cada um, que se situa o que Lacan denominou « a ética da psicanálise ».
  7. Dada a impossibilidade de sua transmissão, seria então preciso reinventar a psicanálise? E o que seria reinventá-la?
    No Congresso sobre a transmissão, em julho de 1978 [8], Lacan evoca novamente seu fracasso, mas para introduzir um novo passo: renuncia à impossibilidade da transmissão da psicanálise, da qual o passe poderia ter dado conta da necessária reinvenção da psicanálise por cada analista.
    Ele novamente parte do analisante, de sua neurose e da possibilidade de se curar de seus sintomas.
    « … aqueles são chamados meus analisantes … tentam me dizer o que neles não anda. E os neuróticos, isso existe. Quero dizer que não é muito seguro que a neurose histérica exista sempre, mas há certamente uma neurose que existe, é o que se chama de neurose obsessiva. As pessoas que vêm me ver para tentar me dizer algo, é preciso dizer que nem sempre eu lhes respondo. Eu tento que isso se passe; ao menos eu almejo. Eu almejo que isso se passe, e certamente é preciso dizer que muitos psicanalistas estão reduzidos aí. É por isso que eu tentei ter algum testemunho sobre o modo como alguém se torna psicanalista: o que faz com que após ter sido analisante alguém se torne psicanalista?
    Eu me perguntei, devo dizer, sobre isso, e é por isso que eu formulei minha Proposição, aquela que instaura o que se chama o passe, no que eu confiei em alguma coisa que se chamaria transmissão se houvesse uma transmissão da psicanálise.
    Tal como acabo de pensar agora, a psicanálise é intransmissível. É muito desolador. É muito desolador que cada psicanalista seja forçado – visto que é preciso que ele seja forçado – a reinventar a psicanálise ».

Afinal, por que não haveria transmissão da psicanálise? Seria a instalação da relação de um mestre e um discípulo? Se assim fosse, isso suporia a manutenção do encontro traumático do desejo do Outro, ou seja, a suposição de que há um saber no Outro que venha responder a demanda do sujeito? (Cf. M. Czermak, Patronymies, Paris, Masson, 1998)
Continua Lacan, neste mesmo Congresso:

« Se eu disse em Lille que o passe tinha me decepcionado, é precisamente por isso, pelo fato de que seja preciso que cada psicanalista reinvente, conforme aquilo que conseguiu retirar do fato de ter sido um tempo psicanalisante, que cada analista reinventa o modo pelo qual a psicanálise pode durar.

Eu tentei, é verdade, dar a isso um pouco mais de corpo; e é por isso que inventei um certo número de escritas, tais como o S barrando o A, isto é, o que eu chamo de grande Outro, pois é o S, que eu designo o significante que, este grande Outro, o barra; quero dizer que aquilo que enunciei em um momento, a saber que o significante tem por função representar o sujeito mas e somente para um outro significante – é ao menos o que eu disse, e é um fato que eu o tenha dito – o que isso quer dizer? Isso quer dizer que no grande Outro não há outro significante. Como eu enunciei numa oportunidade, não há senão um monólogo.

Como acontece que haja pessoas que saram?

Então, como acontece que, pela operação do significante, haja pessoas que saram? Freud precisamente sublinhou que não era preciso que o analista fosse animado pelo desejo de sarar; mas é um fato que há pessoas que saram, e que saram de sua neurose, e mesmo de sua perversão.

Como é possível? Apesar de tudo o que eu disse oportunamente sobre isso, eu não sei nada disso. É uma questão de truque (truquage). Como é que se sussura, ao sujeito que vem para vocês em análise, alguma coisa que tem por efeito sará-lo, é uma questão da experiência na qual desempenha um papel o que eu chamei de sujeito suposto saber. Um sujeito suposto é uma reduplicação. O sujeito suposto saber é alguém que sabe. Sabe o truque, o modo como se sara uma neurose. »

O que é esse truque? Como pode alguém operar o lugar de psicanalista? O que é preciso para que alguém se torne psicanalista? O que o autoriza? O que leva alguém a querer tornar-se psicanalista? E a questão que retorna no ensino de Lacan: o que é um psicanalista?

1 – Na intervenção na sessão de trabalho « Sobre o passe » (03.11.1973, Lettres de l’École freudienne, 1975, n° 15, p. 185-93), Lacan afirma : « Eis o que eu obtenho após ter proposto esta experiência. Eu obtenho alguma coisa que não é absolutamente da ordem do discurso do mestre nem do magister, ainda bem menos alguma coisa que partiria da idéia de formação, eu falei de formações do inconsciente, mas seria preciso saber observar as coisas das quais não falo, das quais jamais deixei um traço: eu jamais falei de formação analítica. Eu falei de formações do inconsciente. Não há formação analítica, mas da análise se extrai uma experiência, que é completamente errôneo qualificá-la de didática. Não é a experiência que é didática, digo isso porque há pouco se falava da psicanálise didática; porque vocês acreditam que tentei apagar completamente este termo didática, e que eu falei de psicanálise pura? Isso tinha, ainda assim, uma certa direção, não é? Isso não impede de uma psicanálise de ser didática, mas o didatismo da coisa, eis como nos o situaremos melhor: eu dei uma aula no ano passado, em um dos últimos seminários, sobre o que está em jogo na pretensa experiência interrogativa a respeito do animal. Coloca-se, como vocês sabem, diversos animais em pequenos labirintos, onde eles ficam como ratos, é o caso de dizê-lo. O que se faz? São ensinados a aprender (on leur apprend à apprendre). Ensiná-los a aprender não é completamente evidente que é alguma coisa conforme seu gênio. Pergunta-se sobre aquilo que é preciso destacar na noção de aprendizagem: São eles capazes, como acontece conosco, de aprender a aprender? » (p. 191)

2 – J. Lacan, apresentação da tradução de Paul duquenne de Mémoires d’un névropathe de D.P. Schreber, Cahiers pour l’analyse, n° 5, p. 69-72, nov. 1966.

3 – Lacan enuncia um equívoco em francês entre Saint Thomas d´Aquin, que é homófono a sinthome d´aucun¸ou seja, sintoma de nenhum.

4 – J. Lacan, Seminário Le Sinthome, aula de 18.11.1975.

5 – Este enunciado aparece na « Proposição de 9 de outubro de 1967 ». Lacan retoma a questão do autorizar-se, de modo esclarecedor, no Seminário 21, Les non-dupes errent (aula de 9.04.1974) : « O ser sexuado não se autoriza senão por si mesmo, mas eu acrescentaria : e por alguns outros« . ; « Com efeito, ao autorizar-se apenas por si mesmo, ele não pode com isso senão autorizar-se também por outros ».

6 – Carta de Jacques Lacan enviada em abril de 1974 a três psicanalista italianos: Verdiglione, Contri e Drazien. Publicada em Spirales, 1981, n° 9, p. 60.

7 – Intervenção de encerramento do Congresso « A experiência do passe », Deauville (08.01.1978), publicada em  Lettres de l’École, 1978, n° 23, p. 180-1.

8 – Intervenção de encerramento do Congresso da École Freudienne de Paris sobre « A transmissão », publicada em Lettres de l’École, 1979, n° 25, v. II, p. 219-20.