A fundação simbólica do Brasil, objeto de extensos estudos, não é um feito unitário, mas se trata de um processo no qual devem ser consideradas muitas fundações, sustentadas pela matriz do discurso barroco, pelas utopias milenaristas que tomavam o espírito ibérico e pelas forças da Contra-reforma.
Nossa pretensão não é fazer um ensaio histórico e muito menos antropológico, mas apenas levantar algumas hipóteses a respeito dos efeitos subjetivos da conquista espiritual da América através de uma pérola barroca que é o fantasma do missionário jesuíta, primeiro europeu a penetrar e se estabelecer no sul do Brasil.
Embalados pelas ondas do Atlântico e sob à Instrução do Geral da Companhia de Jesus, Pe. Francisco de Borja, desembarcam nas terras do Novo Mundo os Jesuítas encarregados da Conquista Espiritual da América. Uma parte desse projeto de fundação, são os Trinta Povos da Província Jesuítica do Paraguai, que se localizava na Bacia do Rio do Prata e corresponde atualmente a parte do território do Paraguai, Brasil e Argentina. Esses povoados iniciam no século XVI (1607), em terras então pertencentes à Espanha, de acordo com a divisão determinada pelo tratado de Tordesilhas (1494), firmado entre as coroas ibéricas, e se encerra em decorrência do Tratado de Madrid (1750), com a redistribuição de territórios, que provoca o enfrentamento bélico dos indígenas contra os exércitos ibéricos unidos. O início do fim (1768) do projeto jesuítico se dá com a expulsão dos jesuítas e o genocídio dos índios catequizados.
A conquista espiritual, protagonizada pelos jesuítas, contrariamente à conquista armada, se faz essencialmente pela persuasão. Quanto à questão da violência, podemos concordar com Hegel, que o encontro de culturas não acontece sem violência. Mas nesse encontro específico, temos de um lado as populações indígenas, povo semi-nômade, disperso e indefeso em decorrência da ação dos invasores e de outro lado o missionário jesuíta, cuja posição subjetiva já é antecipada por Francisco de Borja, quando alerta o Pe. Provincial sobre o fascínio pelo martírio e aconselha precauções:
« Não se exponham facilmente a perigo notável de vida entre gente não conquistada, porque embora seja proveitoso para eles [os missionários] morrer logo nesta busca do divino serviço, não seria útil para o bem comum pela muita falta que há de operários (…). (Suess, 1992, p. 562)
A expressão morrer logo nesta busca do divino serviço destaca a dinâmica da entrega do corpo enquanto corpo crístico, e isso nos aponta para o elemento central da estrutura fantasmática barroca, e que perpassa igualmente a obra do Pe. Antonio Ruiz de Montoya, A conquista espiritual da América (1639), o texto mais antigo sobre o sul do Brasil, escrito em estilo barroco e fruto da ação efetiva em favor da libertação do índio. Esse texto era endereçado ao Rei de Espanha, para que autorizasse aos indígenas o uso de armamentos em defesa contra os ataques dos paulistas e encomendeiros espanhóis.
Ao descrever o martírio do Pe. João del Castillo, Montoya não se poupa de detalhes sádicos, bem ao estilo corrente dos escritos da época, que se prestam a elevar ainda mais a alma ditosa do supliciado: Cansaram-se os algozes em arrastá-lo, sem que se cansasse o santo em tormento tão cruel. (p. 228). Em contrapartida, a morte no leito era indesejável, como ocorre com o Pe. Martinho Urtazun. Lastimava-se por morrer em leito, que não passava de um colchãozinho e duma rede: o que ele julgava ser muito regalo, porque queria morrer arrastado e feito em pedaços por Jesus Cristo. (p. 71) Alguns meses após sua morte, numa aparição para um missionário desesperançado diante dos trabalhos entre os gentios, animando-o a perseverar, lhe diz: Desta glória gozam aqueles que trabalham por Deus. (p. 72)
Logo o outro goza quando está a serviço do Outro, quer seja na entrega do corpo na posição do missionário, apontada no texto de Borja, na expectativa de morte por martírio ou na intenção de conseguir que o indígena se entregue ao gozo de Deus, como aparece na carta do Pe. Roque Gonzalez, na qual escreve também que já tem ciência que vai ser martirizado:
Porque é certo que Nosso Senhor tomou este meio (o temor e medo do espanhol) por seus desígnios secretos para que esses pobres cheguem a seu conhecimento e se faça algo com eles. Não penso outra coisa em quase quarenta anos que lido com eles muito de perto. (Suess, 1992, p. 968)
Voltando aos fundamentos da constituição do fantasma missionário, na posição de conquistador espiritual, encontramos os elementos propostos pelo Concílio de Trento, que resultam na cena barroca. Como nos demonstra Cacho (1995), a posição conciliar sobre a necessidade das obras contra a justificação (isto é, a salvação do cristão) apenas pela fé (posição da Reforma) e sobre a iconografia religiosa determinam o surgimento do barroco. Desse modo, é explícita a relação entre a arte barroca e a militância católica da Contra-reforma: Afirmação da criatura, das obras e da tradição eclesial contra a posição luterana que propunha soli Deo, sola fides, sola Scriptura.
Lacan propõe uma definição do barroco que vem em nosso auxílio: « O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal. » (Lacan, p. 158) A escopia corporal é aquilo que aparece, que se faz visível através da encenação, da obra, enfim, da arte, é o que vai regular a alma, isto é, determinar a subjetividade barroca, seu ser. Não há oposição entre aparecer e ser. C. Lacôte (1995) retoma o barroco, mostrando como a aparência implica o ser, caracterizando uma concepção de verdade barroca que não exclui a aparência. A insistência da Contra-reforma nas obras e nos gestos estabelece uma seqüência lógica: imitar os gestos, fazer os gestos e induzir o ser.
No barroco missioneiro, somente nas obras reconhecidas como de jesuítas, principalmente do Irmão Brassanelli, que esculpiu o majestoso São Francisco de Borja, e nas esculturas indígenas copiadas de modelo europeu, encontramos as contorções de dor e êxtase. Entretanto, quanto mais o indígena se distancia do modelo, mais encontramos feições plácidas sem o enlevo do gozo frente à agonia, não conseguindo reproduzir o imaginário artístico da Contra-reforma. Esculpiam o que viam da santidade, nada mais que os padres em sua condição humana de pregação com seus pesados hábitos e seus gestos rituais. Os corpos e as vestes voluptuosas ficam por conta dos missionários. Se assim era, então o que sustentava a posição de poder dos missionários, mesmo sendo tão poucos em cada um dos Povos? Os indígenas, na descrição de Montoya, não eram nada ingênuos, tolos ou bons selvagens, mas homens espertos e capazes de perfídia, cujas elites negociaram, através dos missionários, a condição de súditos do Rei. Nos Trinta Povos não se encontrava a riqueza mineral que caracterizou o barroco tanto no restante do Brasil como em outras partes da América. Mesmo assim, a opulência arquitetônica foi construída, apesar da grande escassez de ferramentas. Consideramos que aquilo que sustenta por 150 anos esse projeto educacional diz respeito ao caráter fantasmático inscrito pelo missionário. Montoya refere episódios de chefes indígenas renegados que repetiam os rituais e gestos episcopais, em templos construídos fora dos redutos da catequese, em sincretismo com sua própria religião. Nos martírios descritos por Montoya, os índios rebeldes queriam destruir os objetos sagrados (a voz do missionário, os ornamentos e paramentos e igualmente os objetos do culto, como a patena e o cálice). Essas duas situações apontam para aquilo através do qual o poder dos missionários era sustentado: a voz e o escópico.
Ao ler Montoya, encontramos a mesma fantasmática do missionário, em sua entrega sacrificial a Deus, também na descrição de casos particulares de possessão demoníaca, pequenos atos infracionais do cotidiano, induzidos por um demônio enganador, nos rituais de canibalismo dos indígenas, bem como na invasão de bandeirantes e encomendeiros, na captura de índios. Em todos esses relatos, retorna sempre o mesmo fantasma da escravidão, de um corpo despossuído de poder sobre seu destino e posto a serviço do gozo do Outro. Isso resulta numa posição de proteção diante do desamparo. Talvez seja pela mesma posição diante do desamparo que o indígena se deixava tomar pelo fantasmática barroca do missionário. Podemos lembrar também do que correntemente se chama a « conversão do duque de Gandía », que ao ver os estragos que a morte produzira na beleza e juventude de Isabel de Portugal, imperatriz da Alemanha e rainha da Espanha, se firmou nele o propósito de renunciar ao mundo, vindo a ser São Francisco de Borja.
A representação do êxtase, da agonia e da existência do cadavérico na morte, são elementos emergentes no imaginário do século XVI e que encontram sua representação nas artes, na literatura e no culto religioso. Frente a esse real, dá-se a entrega do corpo ao Outro, numa tentativa de garantir uma barreira simbólica através do bem e do belo. Duas formas de entrega do corpo ocorrem na conquista da América: a entrega pelo martírio ou a entrega no combate armado, como ocorrera também nas Cruzadas. Importa observar que em ambos os casos o europeu atravessou o oceano movido por essa mesma fantasmática. Essa é a regulação da subjetividade pela doutrina cristã que « não fala senão da encarnação de Deus num corpo, e supõe mesmo que a paixão sofrida por essa pessoa tenha constituído o gozo de uma outra. » (Lacan, 1982, p. 154) Entre outros tantos ditados populares semelhantes, há no Brasil um que diz: « Para que um goze, outro tem que sofrer ». Isso revela a lógica da alma barroca. Existe uma grande diferença entre ter construído o palco do cristianismo barroco e já ter nascido cristão e barroco. A história da fundação do Brasil nos remete ao problema da filiação na modernidade e ao problema crucial na clínica psicanalítica: onde não há um pai, é possível inventá-lo?
O barroco missioneiro, e o mesmo também pode valer para o barroco no Brasil e na América, oferece uma escrita resultante da arte retórica, plástica e musical trazida pelo europeu que se compõe às formas peculiares de escrita tribal. A enebriante beleza da composição cênica do barroco, mesclada à primitividade do indígena artífice não deve nos paralizar num exame de suas manifestações no elo do imaginário. A exuberância do imaginário presentifica o real enquanto morte e desamparo, do europeu herdeiro das grandes pestes e do indígena confrontado com o risco das novas epidemias. A composição de tradições e referências antagônicas através do imaginário barroco permitiu o surgimento de novas formas de operação da função paterna. É isso que sustentou a comunidade missioneira, que não era uma « república guarani » e muito menos uma simples transposição de utopias renascentista, mas a construção de uma coletividade referida ao Rei e a Deus. É essa posição do Outro, enquanto aquilo que constitui o sujeito, nos permite ler a fantasmática do missionário: Desta glória gozam aqueles que trabalham por Deus.