A única coisa da qual se possa ser culpado,
pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo.
Jacques Lacan
Este breve texto ainda não é um trabalho de cartel, mas é efeito das discussões do cartel que constituímos (integrantes citados na nota de rodapé) em torno do seminário que ora trabalhamos em alinhamento como o eixo de estudo deste ano da Associação Lacaniana Internacional-ALI.
É justo na medida em que Lacan, em O ato psicanalítico [1967-1968], evoca os princípios do método e da prática psicanalíticos, interrogando-os, que o trabalho sobre este seminário, em nossa época, se torna essencial. Principalmente porque nele Lacan põe em relevo nada menos que as próprias condições da cura – do ‘tratamento’, como às vezes nomeamos em português – e do que nela se passa, se realiza, propriamente falando, que não é sem a transferência como condição do ato que produz a brecha pela qual emergem o saber inconsciente e a verdade que, por este saber, pode ser interrogada.
Dadas as condições de nossos tempo, mais que nunca é preciso sustentar a questão «como se analisa hoje?» tomando como base exatamente o que Lacan nos mostra em o O ato psicanalítico, a saber, como procede a psicanálise, que não é «mais uma» técnica de domesticação, de adestramento ou adaptação, mas que, se de alguma maneira há nela uma «técnica», esta visará a possibilidade de que um dizer faça ato deslocando o sujeito de sua posição original, o que só é possível se sustendada pelo desejo do analista.
Lacan anuncia, de saída, que tratará, neste ano de 1967-1968, deste tema, «o ato psicanalítico», indicando a seu público de que maneira introduzirá sua dimensão e seu emprego, ou seja, tomando-o, este público, ao menos em parte, como se nada soubesse sobre isso. Talvez então fosse importante nos colocarmos nesta posição e escutássemos, como se fosse a primeira vez, o que nos traz Lacan sobre isso.
Com estilo original e alusivo, Lacan aborda e introduz o ato psicanalítico passo a passo. Em seu início, há pelo menos duas perspectivas que se aproximam e o orientam. Uma delas é a relação entre saber e verdade; outra é a correlação entre ato e ética. De alguma forma, Lacan discorrerá sobre os distintos modos com os quais o termo «ato» aparece na obra de Freud: o ato falho, o ato sintomático, colocando perguntas como: «o ato é a transferência?», «O ato é a interpretação?», «O ato se confunde com a ação?»; bem como estabelecerá, como fundamento, que da natureza do ato psicanalítico dependem consequências as mais sérias quanto ao que resulta da posição do analista, aquela que se deve sustentar para se estar em condição de promovê-lo, esse ato, uma vez que, enquanto psicanalítico, ele opera algo como uma conversão da posição que resulta do sujeito quanto a sua relação ao saber.
Trata-se de uma subversão a partir da qual, se tomarmos em conta um final de análise, é possível, para o sujeito, separar-se do drama da história de sua vida subvertendo o sentido ao qual estava aprisionado. Tal como Antígona (LACAN, 2008, p. 373) torna-se autonomos, isto é, alguém capaz da heresia do ato de um dizer que o libera para bem fazer uso da linguagem e de sua babaquice, tal é a dimensão desse ato que, nos diz Lacan, «transmite algo seguramente figurado de modo significante e para o qual o adjetivo que conviria seria dizer que não é tão babaca, ainda que a verdadeira dimensão da babaquice («connerie») seja indispensável para alcançarmos o que tem a ver, efetivamente, com o ato psicanalítico (LACAN,1967-68, aula de 02/11/67).
Mas, antes disso, ainda na primeira aula, iniciando com o que vamos chamar de uma comparação, Lacan introduz o que lhe interessa: sua novidade sobre o ato, justamente nos lembrando que, a psicanálise, entende-se, é suposta «fazer alguma coisa». «Isso faz alguma coisa» com acento sobre o «isso faz», «ça fait», o que não é suficiente para defini-lo, para atingir o de que se trata, pois que, esse «ça fait», nos diz ele, também é essencial, é o «ponto central» da visada poética, porque a «poesia», ela também, «isso faz alguma coisa». Este «ça fait» o aproxima, portanto, da psicanálise. Ele segue dizendo que vinha se interessando pelo campo da poesia já há algum tempo, e que tínhamos, até então, pouco nos ocupado acerca do que «isso faz» e a «quem faz» da poesia, mais precisamente, aos poetas.
O que interessa a Lacan neste momento introdutório, porém, não é exatamente saber sobre o de que se trata no ato poético. O negócio é nos introduzir, precisamente, sobre o «isso faz alguma coisa» da psicanálise, que não está no mesmo nível da poesia. Eis, então, a diferença indicada entre ato poético e ato psicanalítico.
Essa distinção se impõe tendo em vista que o ato que caracteriza o fazer psicanalítico implica profundamente o sujeito, cuja dimensão, introduzida pela psicanálise, segundo Lacan, renovou o que pode ser enunciado como sujeito como tal, ou seja, inconsciente, e de tal forma que ele, aí, é colocado em ato, por isso sua dependência em relação à transferência, que não é outra coisa senão a colocação mesma, em ato, do inconsciente. Ou seja, eles têm resultados distintos e, por essa razão, é possível dizer que o resultado do ato poético é a poesia, e o do ato analítico, um dizer, visto que o dizer é um ato que implica a dimensão do sujeito. Contudo, há algo que é preciso considerar: o ato analítico e o ato poético se ligam em suas funções de equivocação, de quebra de sentido, e ambos operam sobre o discurso podendo «acordar a verdade», pois ela, a verdade pode adormecer, «isso depende do tom em que se diz» (LACAN, L’INSU…, 1976-77, p. 93). Tomando em conta o que pôde aprender com a poesia chinesa, sua caligrafia, Lacan nos convida, os analistas, a daí, da poesia, também retirararmos uma semente. Ele se refere aos forçamentos que fazem a poesia:
Se você é psicanalista, verá que essas forçagens através das quais um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, pois o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso vai mais longe, é, antes, mole[1], o sentido tampona, mas, com a ajuda do que chamamos a escritura poética, vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação psicanalítica (LACAN, 1976-77 p. 93) […] É [pois] na medida em que a justa interpretação apaga um sintoma que a verdade se especifica como poética (Idem, p. 94).
Então se pode dizer: se o ato poético faz redução e arrombamentos na língua e assim nasce a poesia, o ato psicanalítico reduz, arromba, equivoca o sintoma fazendo ressoar, pelo equívoco, o Real de lalangue, a partir do que um sujeito, mesmo que não faça poesia, pode vir a poetizar sua experiência dando valor de sinthome ao que antes, gozosamente, era dor e sofrimento.
REFERÊNCIAS
LACAN Jacques
[1] Mou, em francês, que quer dizer mole, amorfo, o contrário de duro, e Lacan talvez aqui utilize mou para se referir ao “que ressoa para além do sentido” indicando sua fluidez em contraponto à dureza/fixidez do sentido.