Ato e transferência
13 septembre 2025

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Darlene TRONQUOY
Journées des cartels

É preciso iniciar este breve comentário esclarecendo que não se trata aqui exatamente do que se poderia chamar de um « trabalho de elaboração final » – uma elaboração/produto de cartel. Pelo contrário, trata-se da elaboração inicial de um cartel que se formou em torno do seminário sobre o ato psicanalítico, mas em momento no qual esses estudos na ALI já estavam sendo finalizados. O próximo seminário a ser trabalhado, o da Transferência, já havia sido escolhido, o que colocou uma questão para o cartel: continuar com o ato psicanalítico ou passar para ao seminário proposto? Decidimos então prosseguir, mas com o objetivo de articular estes temas: ato e transferência, especialmente porque Lacan, desde o início de O Seminário XIV, nos alerta que sem transferência não há ato (« Fora do que chamei do manejo da transferência, não há ato analítico« ), mesmo que o ato, o ato psicanalítico, vise justamente « riscar do mapa » o sujeito suposto saber. Ele é preciso ao afirmar que a transferência se apoia no sujeito suposto saber. Cito-o em sua aula de 7 de fevereiro de 1968:

 

[…] em primeiro lugar, o sujeito suposto saber é precisamente aquilo em que ele [o psicanalista] se baseou, a saber, a transferência considerada como uma dádiva dos céus [há aqui um tom de crítica, talvez à maneira como os psicanalistas a tomaram, isto é, como um “fenômeno” quase natural, sem teorizá-lo até às últimas consequências, o que ele faz], mas também, a partir do momento em que se verifica que a transferência é o sujeito suposto saber, ele – o psicanalista – é o único que pode questionar isso, é porque se esta suposição é de fato muito útil para o engajamento na tarefa psicanalítica, a saber, que existe um – chame-o como quiser: o omnisciente, o Outro – que já sabe tudo isso: tudo o que vai acontecer – claro que não o analista – mas existe um, podemos ir lá… O próprio analista não sabe se existe um sujeito suposto saber, e até sabe que tudo o que está envolvido na psicanálise, em virtude da existência do inconsciente, consiste precisamente em riscar do mapa esta função do sujeito suposto saber (p. 182, Staferla).

 

 

Certamente por isso, em O ato psicanalítico, Lacan não fala de outra coisa que não seja articula « ato e transferência ». E isso não sem retirá-la do campo minado da dita « contra-transferência », tão em voga em sua época e ainda vigente em algumas vertentes da psicanálise, aquelas que sobrevivem ainda como « não-lacanianas ».

 

E é bem por esta razão que Lacan nos lembra (na lição de 29 de novembro de 1967 de O Ato psicanalítico), retomando uma nota já feita durante seu ensino [ele mesmo não se lembrava bem, talvez em seu seminário anterior, A lógica da fantasia]:

[…] que não há, na minha linguagem, Outro do Outro, sendo o Outro, neste caso, escrito com O maiúsculo, que não há, para responder a um antigo murmúrio do meu seminário em Sainte-Anne, infelizmente, lamento muito dizer, a verdade sobre a verdade2. Da mesma forma, não há necessidade de considerar a dimensão da “transferência da transferência”, isto significa nenhuma redução transferencial possível, nenhuma recuperação analítica do estatuto da própria transferência (p. 51, Staferla).

 

 

Dizemos isso para lembrar simplesmente que Lacan responde não somente à questão da transferência como « um dom dos céus », ou como « contra-transferência », com a lógica do seu « sujeito suposto saber » como estando no início de uma análise, e o seu « riscar do mapa » esse sujeito suposto saber como estando ao seu final, o que poderíamos considerar como sendo a barra que recai do lado do grande Outro, ou seja, a barra que recaía sobre o sujeito agora, ao final, colocada sobre o grande Outro.

 

Nosso objetivo nesta comunicação, então, é destacar este significante « riscar », tanto ele é importante em um percurso analítico, tanto não poderíamos falar de « ato psicanalítico » em nossa clínica cotidiana e, menos ainda, quando se trata das análises dos próprios analistas, ou seja, aqueles que visam ocupar esta função para um outro em uma cura, sem a ele nos referirmos.

 

Ele é importante a tal ponto que talvez possamos refletir sobre uma cura [uma psicanálise] considerando a questão: onde então colocar a barra que recai, inicialmente, sobre o sujeito fixando- o, efetivamente, como sujeito barrado, barrado já por sua condição de [falasser] parlêtre, desde sempre, e, mais tarde, pela castração – contingente – operada por seu drama individual. Então, se no início ela recai sobre o sujeito, ao final, ela recai sobre o grande Outro, assim: de S̸ (A) a S(A barrado).

 

Contudo, a questão que se colocou para o cartel, em um dado momento, foi aquela – sempre – que nos traz o manejo da transferência nas psicoses. Inicialmente, estávamos discutindo sobre se, na esquizofrenia, haveria a possibilidade de um sujeito, a partir da transferência em análise, poetizar sua existência ou, ele mesmo, tornar-se um « poema », como nos diz Lacan dele mesmo. Tudo isso no quadro das aproximações que pudemos fazer entre ato poético e ato psicanalítico.

 

Podemos abordar esta questão por um certo viés que é o seguinte : certo, sabemos que é possível, para um sujeito engendrado pela lógica foraclusiva, estabelecer uma transferência – que, aliás, nos diz Lacan, é maciça, com um analista –, ou seja, ele pode, sim, entrar em análise. Lacan, ele próprio, o sabemos, não recuou diante dela, da psicose; porém, ao considerarmos o final de um percurso analítico como sendo a possibilidade de fazer a barra que recaía sobre o S passar a recair sobre o A, riscando assim do mapa o sujeito suposto saber, isso é possível no percurso de um sujeito psicótico ? Ou teríamos que supor que talvez a saída para aquele que somente dispõe da possibilidade de construir suas metáforas delirantes é justamente o recurso de poder « fazer com o Real » fazendo proliferar essas metáforas como meio de fazer uma borda lá onde a dita metáfora paterna ficou a desejar, como é o caso de um James Joyce? Lacan nos diz, com alguma clareza, que Joyce somente não delira porque sua arte « amarra » de tal maneira – que não é uma qualquer – Real, Simbólico e Imaginário que ele assim constrói um « ego ».

 

Pois bem, muitos não têm esta possibilidade, este recurso, por isso falamos de uma « proliferação de metáforas », mas que, no entanto, não deixam de ser um jogo, um jogar com as letras que, possivelmente, lhes permite uma borda para que não soçobrem no delírio cru, ou na alucinação, que tentam, mas não alcançam, a função de lhes afastar do furo como abismo onde, às vezes, se lançam. Talvez este seja o caso de um sujeito esquizofrênico em análise com « seu » analista há mais de 30 anos. Ele faz poemas. Ele os envia ao analista. Em um deles deixa escapar um traço, um traço em um verso que não é qualquer. Ele escreve :

 

 

A adivinhem, pois, qual é a cor dos olhos deste analista ?

 

Ficamos por aqui,

Muito obrigada !

 

 

  • Texto apresentado nas Jornadas de cartéis – ALI, setembro de Cartel: Teresa Palazzo Nazar (+1), Filipe Leme, Wadson Damasceno, José Nazar, José Mário Simil e Darlene Tronquoy.

 

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