Ato analítico e ato político: paralelismos e discordâncias
07 juin 2025

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Jean-Marc BOUVILLE
Journées d'études

Neste seminário, Lacan faz referências aos atos políticos várias vezes. Buscando metáforas possíveis e exemplos concretos fora do campo analítico e da clínica, ele se interroga sobre o ato político de um César atravessando o Rubicão ou de um Lênin dando esta ou aquela ordem. O ato analítico e o ato político são ou não da mesma estrutura?
Lacan responderá várias vezes a essa pergunta, mostrando como a psicanálise pode esclarecer algumas facetas do ato político que provoca uma mudança importante para um país.

 

 

O que é um ato analítico?

 

A questão central desse seminário de 1967-68 não será tratada inteiramente, pois o seminário foi interrompido pelos chamados “eventos de maio de 68”.[1]
O ato analítico não é uma ação, nem uma passagem ao ato,  nem uma palavra específica durante o tratamento analítico, nem uma intervenção durante a análise — embora muitas vezes uma leitura apressada do seminário possa nos levar a pensar isso. Tampouco o ato analítico  se reduz a dar um ensinamento como um professor. Emfim não pode ser confundido com o ato falhado do analisando, apesar que esse ato falhado justamente é aquele que permite revelar uma parte do inconsciente do sujeito. Lacan será muito prudente para apresentar verdadeiramente sua percepção.

 

 Só na lição do dia 20 de março,  ele revela finalmente sua hipótese central.

 

Em primeiro, o ato analítico é um fato de significante que só pode ser elaborado no final de uma análise pessoal.  Trata-se de um efeito de linguagem sobre o sujeito analisado, com a descoberta fundamental da psicanálise segundo a qual esse efeito é um efeito de divisão. Uma vez realizada a percepção dessa divisão do sujeito, o analisado pode operar um retorno, uma volta, um reato — ou seja, um ato analítico. Esse ato é singular, pois não há nada de obrigatório, nada que implique que o analisado assuma um programa — o programa de quem? Senão aquele de tornar-se analista e aceitar a posição particular de ser analista.
Lacan precisa mais: o ato analítico requer motivações subjetivas e toca o efeito do sujeito; e sobretudo, o ato se apoia, ao final… em quem?

 

Ele consiste essencialmente no efeito de sujeito que opera  o que será o suporte para acompanhar o analisando em direção ao sujeito dividido, o $ (S barrado). Toda a experiência gira em torno do objeto a, do qual o analista se faz suporte no final. O ato analítico é a aceitação, do lado do analista, de ocupar a posição de Sujeito Suposto Saber frente à demanda do analisando, sabendo que, ao final, ele estará na posição de objeto a do $ . Ocupará a posição de um objeto de alimentação, ou excremento, ou do olhar ou da voz invocante.

 

Para entender como se constitui um ato, é preciso voltar ao início, ao momento em que o psicanalisando termina sua própria análise. No final de uma análise, supõe-se certa realização da operação da verdade: o sujeito, inicialmente instalado em seu falso ser, agora realiza que ele “não é”. Ele aceita a falta do objeto causa do desejo do ser falante, assim como a aceitação da castração – φ (phi).
O termino da análise consiste na queda do Sujeito Suposto Saber pelo  analizado e  a redução dele ao advento do objeto a como causa da divisão do sujeito que vem em seu lugar.

 

 O analista torna-se como objeto caído, como resto.
Ele realiza o ato analítico, mas ele não está no ato — o que significa justamente que ele fabrica, lança o ato, mas sem estar dentro dele.

 

Portanto, o psicanalista se oferece como aquele que sustenta esse papel de ser o objeto da demanda como causa do desejo. Então, ao inicio, o ato se apresenta como uma incitação ao saber. O neurótico quer saber, usando da sua razão suficiente ! Só que o saber, ao final, é apenas a realização significante do “não-todo”, ou seja, da castração ligada à revelação do fantasma para o analisando.

 

Então, do lado de um analisando, o fato de iniciar uma análise seria realizar um ato analítico? Não, pois, ao iniciar uma análise, ele aceita se demitir de agir. Uma análise é um trabalho, quase uma profissão.  O ato está do lado do analista apesar de estar fora do ato.

 

  • Analogias possíveis

 

Há uma primeira comparação possível com um ato trágico: Lacan fala de uma dimensão analógica entre o ato analítico e o ato trágico. O herói que se engaja sozinho num ato está destinado, ao final, a ser o resíduo, o dejeto da sua própria empreitada, da sua própria escolha. Pensamos no destino de Édipo, de Antígona, por exemplo. No teatro grego, o analisando seria o casal formado pela dualidade Espectador | Coro Antigo, pois, de fato, ambos se descobrem como sujeitos divididos, tomando consciência de suas divisões subjetivas com a ajuda da história trágica do herói.

 

Outra analogia possível com a lingua poética. Lacan utiliza um poema de Rimbaud intitulado “Para uma Razão” para fazer uma metáfora do objetivo da análise. Uma breve explicação sobre o contexto da escrita do poema: Rimbaud escreve os poemas Iluminações em 1872, depois da guerra contra a Prússia. Seu objetivo de vida era ultrapassar o banal da vida cotidiana, assim como ultrapassar a maneira de escrever poesia (poema em prosa), e encontrar uma nova Razão. Para Rimbaud, há a Razão de Descartes e também a nova Razão do século XVIII com os filósofos reclamando uma mudança política: viver com todos os sentidos, viver de maneira extremamente intensa. Ele escreve em 1871 a célebre frase: “O EU é um outro.” Na mesma carta[2], Rimbaud escreve: “É falso dizer ‘eu penso’. Devemos dizer ‘pensam-me’.” Isso já é uma premissa da frase de Lacan: observar os efeitos da linguagem sobre um sujeito.

 

  • Qual seria a analogia com um ato político?

 

O ato dito do Rubicão, ou a noite de 4 de agosto (na França, data da abolição dos direitos senhoriais sobre a população camponesa), o juramento do “jogo da pauma” (início da Revolução Francesa, quando os deputados juram não se separar antes de mudar o regime político), as jornadas de outubro (na Rússia imperial, revoltas populares que iniciaram a Revolução Bolchevique).
A travessia do Rubicão não tinha uma importância estratégica tão grande. Era sobretudo um ato de violação, uma exploração da terra-mãe, da República.

 

Foi também um verdadeiro acto político pois a Republica Romana mudou para regime imperial.
Lênin, durante as jornadas de Outubro de 1917, atravessando a Europa da Suíça até a Rússia, realiza um ato? Ou o ato já estava na publicação das obras de Marx e na difusão de significantes específicos indicando a necessidade de uma revolução?

 

É importante pensar sobre essa questão, pois, portanto, o ato político seria o fato de suscitar um novo desejo.
Na lição do dia 17 de janeiro, Lacan retoma o tema do ato político e da reflexão filosófica e política ocidental sobre os frutos do ato político, o objetivo dele.
Para Aristóteles (Ética a Nicômaco), o fruto do ato político é o Bem, definido como o prazer direcionado pelo Soberano Bem.

 

Kant trabalhará sobre a necessidade de que o ato político seja guiado pela máxima de uma dimensão universal: agir de tal maneira que qualquer pessoa na humanidade poderia aceitar esse ato.
A questão que Lacan introduzirá frente ao posicionamento de Kant será se também se pode aceitar a posição de Sade na mesma época: “Faz segundo o teu próprio prazer, sem levar em conta as consequências sobre os outros.” ( “a Filosofia na Alcova” ). Sade define um outro universal político que é criado portanto na mesma época que o do Kant:  a possibilidade  do mal absoluto.

 

Depois vem a reflexão de que o que conta no ato político seria a intenção. Devemos ser conduzidos pela intenção de fazer o Bem, uma intenção reta. Existiria um campo do Bem possível. Só que Hegel apresentará a astúcia da razão — ou seja, o fato de tentar fazer o bem e obter, no fim, o resultado inverso da intenção. O provérbio atribuido a Bernardo de Clairvaux diz :” O caminho pelo inferno está cheio de boas intenções”.

 

Integrando o pensamento e os objetivos de Marx, Lacan afirma que os atos políticos, no início, são um dizer. O dizer pode ser tratado no mesmo registro daquele do ato analítico, que também vem de um dizer, com a fórmula de Freud: “Onde isso era, eu devo advir.”
Se avançamos nessa direção, podemos então concluir algo sobre o ato político: se eu introduzo no mundo uma nova ordem, se ajo, se lanço no mundo essa fala nova, essa coisa nova, devo tornar-me o lixo, o dejeto desse projeto.

 

Neste caso, qual será o destino de César após a introdução do sistema imperial em lugar da República romana, senão ser assassinado? Podemos refletir sobre diferentes atos políticos e suas consequências para aqueles que organizaram o dizer para lançá-los. Muitas vezes é visível que houve um destino pelo menos trágico para esses homens, como o herói na tragédia grega.

 

Justamente, na lição seguinte, do dia 24 de janeiro, Lacan fala do incidente que marcou o final do seu seminário anterior. Uma pessoa gritou na sala que o seminário de Lacan era o seminário Che Guevara, no sentido de que ali se falava da apologia do ato revolucionário.
Lacan afirma que essa intervenção indelicada deve ser relacionada à sua afirmação sobre a consequência de um ato: não há ato cujo autor possa dizer-se inteiramente mestre. Ou seja, não podemos saber o que vai acontecer depois de qualquer ato.
Mas Lacan termina sua intervenção dizendo que todo ato — e não apenas o analítico — tem uma promessa, e apenas uma: para aquele que o lança, ele acabará no final no lugar do objeto a.
Portanto, Lacan afirma que não é um seminário revolucionário de forma alguma, pois ele não quer dar um toque de escova para dar brilho ao trágico da história. Ela já é bastante trágica.

 

Na lição do dia 20 de março, Lacan retorna ao conceito marxista de revolução. Na verdade, a revolução constitui um ato político forte, com motivações e efeitos sobre os sujeitos, produzindo neles uma mudança radical.
Só que, nessa altura (anos 60), pode-se observar, nos países comunistas da época, como a intelligentsia, os pensadores, os filósofos e os artistas têm dificuldades em sobreviver  dentro da nova ordem  comunista.
Seria que, justamente, dentro de vários atos políticos importantes de mudança radical, vemos como os homens políticos não aceitam entrar na posição de objeto a, de serem rejeitados como tal, uma vez que o povo descobre uma parte da verdade societal?

 

Uma última referência a Marx será na lição de 7 de fevereiro, quando Lacan fala da produção do psicanalisando no campo do ato analítico. O analisando produz o psicanalista.
Se falamos da exploração do trabalhador, pensamos muitas vezes do lado da alienação do fruto do trabalho dele. A mais-valia é roubada pelo capitalista. OK.
Lacan mostra que o risco dessa afirmação é esconder outra alienação ainda mais forte e cruel: o fato de que o produto do trabalhador, no final, é o próprio capitalismo!
O sistema assalariado vem de onde, senão da reprodução cotidiana da relação de força social entre patrões e operários.
Enquanto os trabalhadores continuarem a ir ao trabalho, o capitalismo continuará.

 

Como o analisando produz o analista — até o final, até o desaparecimento do Sujeito Suposto Saber.

No Capitalismo, a questão central lançada com Marx foi : Quem é proprietário dos meios de produção e vai beneficiar da mas-valia produzida ? Numa análise, a produção do saber durante o tratamento vai produzir, revelar o que, senão o que Lacan chamou de objeto a ?

 

Mas no seminário seguinte, Lacan precisa da discordância entre os dois actos político e analítico. Se faz um revolução a um momento porque existe um ponto onde as coisas desagradam a população. Para um analista, a sua posição singular necessita que, para permitir que se opere o ato analítico, não haja lugar para qualquer coisa que lhe de prazer ou desprazer, gosto ou desgosto.  Se ele der um espaço para o desprazer ou o prazer, ele sairá do espaço analítico.


[1] Lacan acabará a sua reflexão sobre o ato analítico no seminário do ano seguinte “ do grande Outro até o outro”, capítulo XXII.

[2]  Carta de Rimbaud para seu professor de retórica Georges Izambard em maio 1871