« … sempre cego
a quase todos
por querer ver
demais o mesmo. »
Tarso de Melo
Certamente hoje em dia não é mais consenso o que podemos entender por progresso. Se no inicio da era industrial, víamos nas máquinas a esperança de liberar o ser humano de trabalhos desnecessários, restituindo ao homem a oportunidade e o tempo de se voltar para seus valores mais essenciais, hoje percebemos que acabamos nos mimetizando com seu funcionamento. Assim, muitas vezes funcionamos na mesma lógica de produtividade das máquinas e oferecemos nossos produtos, mesmo que o custo seja perder a potência da vida. O ruído das máquinas em suas engrenagens implacáveis tem silenciado as poucas vozes que se insurgem ainda contra elas. Podemos lembrar aqui o aparelho de tortura no romance A Colônia Penal de Franz Kafka que impossibilitava qualquer comunicação. Sempre que acionado, seus ruídos impediam que algo pudesse ser escutado numa conversa. A máquina impõe um silêncio inquietante e doloroso. Mesmo que saibamos acionar o botão de start nem sempre sabemos o princípio do seu funcionamento, e o que é pior, o que este funcionamento produz. Finalmente, o importante é que funcione. O elogio da técnica se consolida como um novo paradigma de nosso tempo e que ocupa assustadoramente todos os espaços do mundo e do pensamento. A técnica e seus paradigmas científicos institui lugares de poder, formas de agir, de pensar, de estar, de morrer e de imaginar. Karl Kraus, escritor austríaco, foi categórico ao dizer que o progresso « faz porta-moedas com pele humana ». Dizia ele:
« É minha religião acreditar que o manômetro está em 99. Por todas as extremidades escapam gazes da podridão do cérebro mundial, a cultura não tem mais nenhuma possibilidade de respirar, e no final há uma humanidade morta deitada ao lado de suas obras, obras que lhe custaram tanto espírito para serem inventadas que não restou mais nenhum para utilizá-las. Fomos bastante complicados para construir a máquina, e somos demasiado primitivos para nos fazer servir por ela. Praticamos comunicações mundiais em pista estreita. » [2]
As cidades em suas verticalidades assustadoras tem se constituído numa das imagens de progresso. O elogio da aglomeração institui vidas que lutam desesperadamente por uma ascensão. Chegar no topo funciona como o motor da ação. Trata-se, como sabemos, de uma captura por uma imagem ideal. Neste percurso muitos acidentes. Nas cidades podemos ver o que o progresso vai deixando de restos pelos cantos. Este progresso se alimenta de desigualdades. Se partimos da proposição de Roger Caillois de que o eu é permeável ao espaço , precisamos entender a construção destes espaços urbanos para termos idéia de que sujeitos se fazem ali presentes. Como desenvolve Caillois podemos ver no mimetismo este desenho da relação do organismo com o meio. Este mimetismo revela a função do espaço como estruturante de lugares possíveis para o sujeito. Uma das conseqüências já nos salta aos olhos: trata-se da despersonalização pela assimilação ao espaço. [3] Vemos inúmeros lugares devoradores nas cidades, lugares negros. Constatamos que a cidade contemporânea fragmentou o espaço. Esta fragmentação se deve, em muito, a um progressivo esvaziamento da esfera pública que tem alimentado a construção de verdadeiras ilhas protegidas: os novos guetos consolidados e hipervalorizados e que tem como figuras emblemáticas as microcidades cercadas, lembrando em muito as cidadelas medievais. Como lembra Guilherme Wisnik:
« a crise do mundo contemporâneo está relacionada ao eclipsamento progressivo da esfera pública, que corresponde à ascendência do âmbito doméstico à esfera social. Ou seja, a sociedade de massas promove, por meio do consumo, a emancipação do labor, do animal laborans, que preso da privatividade e da premência da vida, em seu ciclo biológico, jamais gasta suas horas em outra coisa que não consumir. » [4]
Uma das obras poéticas que marcou época no Brasil e que talvez possa delinear um ponto de passagem entre a ebulição contestatória da juventude dos anos 70 e que progressivamente parece, ao que tudo indica, ter declinado assustadoramente, principalmente no que diz respeito a projetos coletivos de crítica social, é o « Poema Sujo » de Ferreira
Gullar. Este longo poema termina com uma reflexão sobre a cidade:
« O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa
…
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa » [5]
Nosso desafio, portanto, é pensar os diferentes modos de como podemos estar na cidade ou, para sermos mais precisos, de como a cidade está em nós. O que talvez possa nos surpreender é que estes « diferentes modos » cada vez mais se estreitam numa homogeneização do sentir e do pensar sem precedentes na história e que marca, de forma preocupante, a crescente perda da responsabilidade de cada um para com as suas próprias vidas. Responsabilidade que deveria nos lançar no compromisso de fazermos de nossos atos na vida princípios-esperanças , para lembrar a proposição de Ernst Bloch [6] e assim, resgatarmos, mesmo que parcialmente, a função da criação de novas formas de vida. A imagem poética de Gullar , na metáfora da árvore e do pássaro, nos indica uma separação que pode nos esclarecer sobre a geografia do contato, de como finalmente uma coisa pode estar em outra ou com outra. O pássaro se despede de seu lugar de pouso mas deixa o registro de sua presença. Encontramos, portanto, a idéia mesma de transmissão que fica como traço daquilo que foi possível inscrever nos lugares de pouso. Para fazer as cidades voarem precisamos de imaginação e também da possibilidade de legitimar diante do coletivo que nos abriga o valor de uma experiência que ainda possa alterar o fluxo dos imperativos dos funcionamentos autônomos e da burocracia que regula a vida.
As cidades nasceram dentro de um projeto utópico de materialização tangível das relações humanas e que, como sabemos, remonta às origens da chamada « revolução urbana » , ocorrida há cerca de 5 mil anos no Oriente próximo. Muitos historiadores e sociólogos contemporâneos indicam o radical impasse desta história pois paradoxalmente nunca tivemos cidades tão grandes e tão complexas mas ao mesmo tempo tão esquecidas do princípio que as fundou. O declínio da esfera pública que pode ser dissecado numa análise do projeto da construção da modernidade nos coloca diante de novos desafios do pensamento. Hannah Arendt mapeia este impasse ao nos dizer o seguinte:
« A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia um dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar na sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las uma às outras e de separá-las » [7]
Este medo do contato, a evitação do estranho dá o tom da estratégia de sobrevivência desenhando uma paisagem, pouco alentadora, na medida em que regulamos a vida pela inibição do pensar e a procastinação do agir. Como sabemos a palavra utopia está em baixa. Hoje ela é sinônimo de inconseqüência, inutilidade, impossibilidade e devaneio. A juventude que sempre cumpriu esta função de reaquecer a máquina crítica e projetar novos olhares sobre a cena social, hoje se protege na sombra/sobra dos objetos de consumo, a nova ópera compensatória de um vazio de projetos. A hegemonia da forma, na expressão de Cornelius Castoriadis [8] ou a forma formadora segundo Michel Mafessoli [9] desenham o horizonte deste silêncio. Assim curiosamente, até mesmo o intervalo das ditas gerações se estreita diante da forma como buscamos os objetos de consumo. Contudo, nem mesmo o compartilhar deste espírito de estar na cidade/estar no mundo faz laço já que a sociedade dos indíviduos, como propõe Norbert Elias se costura num ferrenho individualismo.10 O individualismo, produto do liberalismo moderno, é a expressão mais acabada da submissão do indíviduo « à razão de autopreservação » como aponta Adorno & Horkheimer na Dialética do Esclarecimento:
« A dissolução geral da individualidade parece ser o preço maior que o homem da sociedade moderna pagou, dependendo cada vez menos de sua própria razão e cada vez mais de uma razão instrumental da sociedade. Vivendo sob as condições impostas pela racionalidade tecnológica e pela automação do trabalho, os indivíduos se vêem dominados por uma ordem social apoiada na coerção, materializada tanto nas relações de produção e nas formas de consumo, quanto em crenças e idéias que direcionam sua consciência social » [11]
A utopia tem por função, portanto, revelar os avessos da cidade, aquilo que fica na sombra, nos ajudando a entender a lógica da sua construção, o recalcado de sua história. A utopia tem, portanto, uma função de crítica social. Na história foi esta sempre a sua função social. Quando, por exemplo, Thomas Morus 12 propõe sua « ilha de papel » não se tratava de afirmar um horizonte possível neste sonho de um ideal descrito e objetivável mas, ao contrário, iluminar o presente e indagar assim os impasses da sociedade do seu tempo. Deveríamos aí pensar a utopia não em direção a realidade mas a utopia contra a realidade. Estas formas nos auxiliam, portanto, a recuperar histórias esquecidas ou recalcadas. Roger Dadoun , no seu lúcido artigo « Utopia: a emocionante racionalidade do inconsciente » vai ser muito enfático ao propor pensar a utopia como formação do inconsciente.13 Ela teria por função em último instância enunciar o enigma do desejo. As perspectivas utópicas nos colocam sempre diante da possibilidade de um outro lugar possível num claro esforço de esburacar o tecido repetitivo com o qual nos cobrimos para enfrentar as interpéries da vida. É neste ponto que podemos situar a posição adolescente no desafio de indicar os avessos e as sombras das imagens que conformam o laço social. O adolescente, justamente por estar numa condição de passagem, busca um lugar. É como que impelido a se confrontar com os lugares instituídos buscando inventar outras possibilidades de estar no mundo.
Vi recentemente uma exposição da artista inglesa Rachel Whiteread que materializa com todas as letras alguns dos argumentos que trago neste artigo.14 Whiteread com suas esculturas construídas do vazio e do oco dos objetos oferece ao espectador o que não se vê. Ao moldar o espaço vazio das coisas com inúmeros materiais tais como gesso, cimento, resina, borracha, bronze, feltro etc ela indaga sobre as condições de inscrição destes espaços de ausência e de silêncio. Seu processo de trabalho consiste em preencher o oco de muitos objetos (banheiras, prateleiras, vasos, etc.) com algum dos materiais que mencionei e depois apresentar somente este « interior da forma ». Um dos seus trabalhos mais impressionantes é a obra Casa de 1993-94. A artista enxertou cimento dentro de uma casa abandonada e depois derrubou as poucas paredes que restavam. No final do processo vemos o molde deste espaço. O negativo revelado, o avesso eloquënte. Moldar o espaço vazio é abrir zonas de imaginação. A opacidade das formas que revela contrastam com o espírito de transparência de nosso tempo indicando o limite da visibilidade. A obra de Whiteread revela os espaços que não percebemos, este negativo que vive dentro das formas. Não podemos entrar nestes espaços com o corpo mas podemos penetrá-los com a imaginação. O avesso, portanto, nos permite um outro olhar. Penso aqui nas equivalências de lógicas entre estas esculturas e o princípio norteador de Freud, por exemplo, no texto « A Denegação » de 1925. Freud, neste artigo, procura se indagar sobre o conteúdo de uma imagem ou um pensamento recalcado. Ele propõe como idéia que a negação é uma forma de mostrar: basta ouvir, basta ler numa lógica do avesso. É interessante também sublinhar que Freud neste artigo propõe um desenho entre exterior e interior. O não seria uma espécie de organizador do que deveria estar dentro e fora do eu. Freud, inclusive, utiliza a metáfora do comer e cuspir como figuras explicativas deste movimentos. 15
Poder ver uma cidade pelos seus avessos inaugura a esperança que um outro olhar ainda é possível. Este avessos vão mostrar espécies de espaços banais que segundo Milton Santos 16 são os responsáveis por abrir caminho a plenitude da vida: espaços portanto do convívio, da cidadania, da responsabilidade com o que se compartilha no espaço público.
Todo ato criativo é , em última instância, um ato utópico pois tenta fundar um novo lugar de enunciação e assim recuperar esperanças adormecidas em algum avesso esquecido Que utopias poderiam recuperar este espírito contestador em nossos jovens abrindo assim condições de reinvenção de formas de vida nas cidades?
Edson Luiz André de Sousa : Analista membro da APPOA, Professor do Instituto de Psicologia UFRGS e do Pós-graduação em Artes Visuais da UFRGS, Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII, e-mail: edsonlasousa@uol.com.br
2 – KRAUS, Karl. Cette grande époque. Paris: Editions Rivage, 1990, p.187
3 – CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme, Paris, Gallimard, 1938, p.112
4 – WISNIK, Guilherme. Utopia e fabricação da cidade. Revista Sexta-feira, n°6, São Paulo: Editora 34, 2001, p.92
5 – GULLAR, Ferreira. Poema Sujo in: Toda Poesia. São Paulo: Círculo do Livro, s.d., p. 388
6 – Ver BLOCH, Ernst. L’esprit de l’utopie, Paris, Gallimard, 1977.
7 – ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985, p. 62
8 – Ver CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982
9 – Ver MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências . Petrópolis, Editora Vozes, 1996
10 – Ver ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
11 – SOUSA, Janice. Reinvenções da Utopia – a militância política de jovens nos anos 90. São Paulo: Hacker Editores, 1999, p. 69
12 – MORUS, Thomas. A utopia. Porto Alegre: LPM, 1997.
13 – DADOUN, Roger. « Utopie: l’émouvante rationalité de l’inconscient » in: BARBANTI, Roberto. L’art au XXe siècle et l’utopie. Paris: L’Harmattan, 2000.
14 – Exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro 2/12/2003 a 29/2/2004 e no Museu de Arte Moderna de São Paulo de 18/3/2004 a 3/5/2004. Curadoria de Paulo Venancio Filho e Ann Gallagher. Ver catálogo: WHITEHEAD, Rachel. Rachel Whitehead. Rio de Janeiro: Arte Viva, 2003.
15 – Ver FREUD, Sigmund. (1925) La negación, in: Obras Completas. Vol. III, Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, p. 2885
16 – Ver sobretudo SANTOS , Milton. Por uma outra Globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p.112. Ver também de SANTOS, Milton. A natureza do espaço, São Paulo : Edusp, 2002.
Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985
BLOCH, Ernst. L’esprit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977.
CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme. Paris: Gallimard, 1938
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982
DADOUN, Roger. « Utopie: l’émouvante rationalité de l’inconscient » in: BARBANTI, Roberto. L’art au XXe siècle et l’utopie. Paris: L’Harmattan 2000
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
FREUD, Sigmund. (1925) La negación, in: Obras Completas. Vol. III, Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981, p. 2885
KRAUS, Karl. Cette grande époque. Paris: Editions Rivage, 1990
GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. in: Toda Poesia. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências . Petrópolis, Editora Vozes, 1996
MORUS, Thomas. A utopia. Porto Alegre: LPM, 1997
SANTOS , Milton. Por uma outra Globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. A natureza do espaço, São Paulo : Edusp, 2002.
SOUSA, Janice. Reinvenções da Utopia – a militância política de jovens nos anos 90. São Paulo: Hacker Editores, 1999
WHITEHEAD, Rachel. Rachel Whitehead. Rio de Janeiro: Arte Viva, 2003
WISNIK, Guilherme. Utopia e fabricação da cidade. Revista Sexta-feira, n° 6, São Paulo: Editora 34, 2001