Será que ainda morremos de vergonha? Talvez devêssemos, porque a cada dia nos deparamos com nosso fracasso enquanto civilização. De que servem séculos de pactos chamados de civilizatórios se o que fazemos dia após dia é exercer nossa barbárie. Uma barbárie disseminada nos espreita a cada dia, seja dentro de casa, seja nas ruas. Que o homem é um ser pervertido pela linguagem já sabemos, que por isso somos lançados num desamparo atroz também, que procuramos em nossos laços sociais encontrar algum suporte para existir (e ex-sistir) também sabemos disso, mas que nosso fracasso quanto a isso tenha que ser o ódio ou o cinismo talvez disso precisemos saber um pouco mais. Até porque poderíamos escolher o caminho da vergonha, da depressão, do delírio, da perda da realidade, mas não, algo nos leva, e cada vez mais, para o ódio genocida, isto é, eliminar o semelhante a qualquer preço, ou o cinismo, isto é, “não havia outro modo, ele me deixou sem saída”.
As situações espalhadas pelo mundo que demonstram esse fracasso são inúmeras, e seguem o mesmo roteiro: o outro é mau, ou quer o mal, não presta, é um inimigo que precisa ser eliminado para que a paz seja conquistada. A paz é uma conquista da força e pela força. Depois vem os pactos, mas é a força que a agencia. Que paz é essa? É pacto ou submissão? Quase sempre submissão, portanto, é o ódio que a cimenta. Esse roteiro deveria nos espantar, nos alarmar, porque ele é a prova de nosso fracasso como seres falantes. Mas não, passamos ao largo dessa verdade e seguimos apostando nisso, nos submetendo a essa lógica. E o que produzimos? O inferno, que nada mais é do que a cocção de nossos gozos desembestados! O inferno de Dante, o inferno do apocalipse, o inferno de Gaza, o inferno do Carandiru, e agora o inferno do Morro da Misericórdia, no Alemão. Infernos que são passagens ao ato desesperadas, mas ainda assim cruéis e feitas de horror!
O que espanta é que, a cada dia, enquanto sujeitos e enquanto povos, não possamos parar um só instante essa sina odienta e sofrer disso. Precisamos sofrer disso!! Mas será que ainda há tempo? Precisamos parar de deixar que tudo volte ao normal no dia seguinte como se fosse assim mesmo, como se fosse um destino, um modo ‘natural’. Precisamos dizer pra nós mesmos e para nossos próximos, e para os não próximos também, que é preciso tomarmos um tempo de nossas vidas para sofrer com esse horror que conseguimos não deixar de fazer a cada dia, como se fizesse parte do normal, do aceitável, do razoável, do jogo político. É preciso dizer que isso não é normal, não é aceitável, não é razoável, e que essa política é a da barbárie. E que esse status quo que se reproduz nesse modo, e desse modo, é o pior da pulsão de morte. Ou melhor, é a prova cabal de nosso fracasso para ter com a morte algum destino menos funesto e horroroso. A morte é inevitável, mas seu caminho de horror é nossa decisão, enquanto sociedade. E precisamos admitir que é esse o caminho que percorremos e ao qual estamos conduzindo nossos semelhantes, em especial nossos filhos. Esse é o legado que estamos transmitindo a eles.
Pelo Amor de Deus, vamos ter um pouco de vergonha, de horror a isso! Quem sabe assim poderemos nos poupar da pantomima que nos são oferecidas para justificar o nosso pior. Melhor assumir que somos os autores desses horrores, que fracassamos em um outro laço social fora desse universo do bem e do mal, que, se Deus quiser, ainda podemos ter alguma sorte de morrer de vergonha. Ou mesmo de melancolia, porque afinal, o melancólico é esse que se toma como o pior no mundo, aquele que arruína a todos, aquele que carrega a coisa mais pustulenta de todas, e que é um perigo para seus semelhantes. Essa é nossa patologia. Só que nos defendemos dela, nos tornando paranóicos! Que Deus nos permita sofrer com isso, ainda que, uma das coisas que um melancólico mais sofre é de não ter mais meios de sofrer. Talvez seja essa nossa condição de base.
29 de outubro de 2025.
Eduardo de Carvalho Rocha. Psiquiatra e psicanalista.